Edwaldo Arantes *
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O “Lanches Árabe” era um bar realmente feito para a noite, iniciava suas atividades pelas 22h até o raiar do dia, reduto dos boêmios, intelectuais, forasteiros, notívagos e os cortejos etílicos.
O gerente do local era uma pessoa das mais dignas e sérias de nome Moacir Bonagamba, um epíteto pomposo que ninguém conhecia, carinhosamente tratado pelo Sr. Moa.
Em um final de tarde cheguei, cumprimentei-o como sempre, sendo sua resposta marca registrada, olhava por cima dos óculos, balançava a cabeça, severo por fora e doce por dentro, característica também afeita ao senhor Sérgio; “Serjão Lanches”, que fazia o melhor carne e queijo sem sorrisos e palavras.
O Carlinhos serviu-me uma generosa dose de “Johnnie Walker Black Label” em copo grande, gelo abundante e uma garrafa de água com gás.
Meu lugarzinho era no começo do balcão verde que percorria todo o corredor, neste dia, sentado sozinho estava o Paulo Camargo, um ser humano na verdadeira acepção da palavra, batuta na arte e na vida, amigo e companheiro, sua casa na esquina das ruas Comandante Marcondes Salgado e Prudente de Morais nunca possuíram fechaduras, com suas portas ininterruptamente abertas, principalmente aos desvalidos perseguidos pela má sorte da vida.
A residência era mesmo um templo da solidariedade, impossível para um simples mortal, descrever a obra do gênio, lotada de tintas, cores, suores e lágrimas, retratando com traços rudes, convictos e poéticos a crueldade dos homens, a déspota, violenta e assassina ditadura militar, seus porões, desaparecidos, torturados, presos e banidos. Bem, voltemos ao “Árabe”, deixemos as melancolias, mágoas e reminiscências escondidas e trancadas no fundo da alma.
Sentado em uma mesa estava um destacado amigo, querido por todos pela sua cordialidade, polidez e discrição, aliadas a uma marcante timidez.
Na sua frente, olhos nos olhos, uma div
a digna de um “crime passional”, cabelos longos e louros, de um amarelo como centelhas, unhas longas e vermelhas, entre os dedos uma cigarrilha levada junto aos lábios em tragadas, misturadas de sensualidades e volúpias.
A fumaça brotava formando pequenos círculos no ar, imitando corações apaixonados, formações que meus parcos vinte anos imaginavam.
Fiquei ali girando o gelo com a ponta do dedo, sorvendo pequenos goles, espiando, espreitando com respeito esta “dama do crepúsculo”, acompanhado apenas pela distância presente do Paulo, absorto e envolvido com seus desenhos, pincéis e revoluções.
A musa falava, fumava e brilhava, nosso amigo apenas a olhava imóvel, pálido, o rosto impassível, fixo na beldade, sem alterar um músculo sequer, tal qual o jogador de pôquer na derradeira rodada.
E a loira falava e falava, ele estático, descorado e desbotado, os olhos amarelos e marejados, as bochechas estranhamente infladas, lembrando pequenas bexigas cheias de gás.
Depois de um tempo, cansada de palavras ao vento, em um gesto brusco, porém elegante, fulminou-o com aqueles olhos de topázios, lançando uma derradeira e longa tragada, digna de Rita Hayworth em: “Nunca houve uma mulher como Gilda”.
Assim que a divina loira desapareceu nos calcanhares, nosso amigo sentiu jorrar-lhe da boca um jato a muito custo contido, abafado e guardado na presença da divindade, que enfim liberto saltou-lhe como as águas do Iguaçu, explodindo em um robusto chafariz, fazendo inveja ao Vesúvio na erupção que sepultou Pompéia.
Terminada a crise, com os olhos esbugalhados, uma pequena lágrima descendo, atônito e catatônico, mais triste que o Pierrot apartado de sua Colombina na quarta-feira de cinzas.
Virou-se para o balcão num gesto constrangido, buscando socorro e abrigo em um momento de desamparo e renúncia, suportando o olhar descontente e feroz do garçom, munido de pano, esfregão, balde, detergente e raiva.
Ao tentar explicar a inusitada e dantesca ocorrência, mirou-nos firme e decidido, justificando em alto e bom som:
– “Educação é fogo”!
Retirou-se com toda a sua serenidade e fidalguia, dirigindo-se à saída, ouvindo ainda as palavras e o comentário preciso e incontestável do velho Moa:
– Perdeu o Chivas e a deusa, mas não perdeu a classe e a compostura.
* Agente cultural