Tribuna Ribeirão
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Quando a estupidez humana extrapola todos os limites

Ricardo Castilho*
https://www.facebook.com/ricardocastilho.oficial/

Vi recentemente o filme “O Assassino em Mim”. Horripilante, para dizer o mínimo, o requinte de crueldade e frieza do psicopata travestido de homem da lei em uma cidadezinha do Texas/EUA. O personagem é a personificação, na vida real, de misóginos que impõem o mesmo ritual perverso às mulheres com quem vivem. Basta ver os estarrecedores índices de feminicídio no Brasil, onde quatro mulheres são assassinadas diariamente por ex ou atuais parceiros, configurando a premissa de que “o inimigo mora em casa”. Em SP, apenas no 1º semestre de 2023 foram 34% a mais em relação ao mesmo período do ano passado. Os casos de lesão corporal dolosa e de ameaças contra mulheres somam 80% segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP).

O assassinato de mulheres, quando essa atroz modalidade de crime ainda não tinha a conotação jurídica como feminicídio, já era uma das tragédias anunciadas da Humanidade muito antes de ter se acirrado o debate global de gêneros, do feminismo e da igualdade étnica e racial. Há mais de sete décadas, em um outubro que ainda não era rosa, a escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir contestava os protocolos da medieval e suposta hierarquia de gêneros, enunciada em trabalhos de respeitáveis figuras do campo filosófico como Engels, Marx, Freud e Aristóteles com a pergunta que ainda não quer calar: “Onde está a raiz da desigualdade entre homens e mulheres?”

Por que, afinal, os homens estão matando as mulheres que dizem amar? Há mais interrogações do que imagina a nossa vã filosofia para explicar o funcionamento dos gatilhos que levam o homem à insanidade do feminicídio. A diferença de status social e econômico, a exposição nas redes de internet, as fake news, a mudança de comportamento, a imagem da mulher que o homem constrói no começo da relação e quer manter intacta até que a morte os separe…

Esses gatilhos podem ser acionados isoladamente ou em conjunto e, seja como for, acabam levando ao ciúme doentio, como foi o caso dos primeiros feminicídios de repercussão no Brasil: da socialite Ângela Diniz em 1976 pelo playboy Doca Street e da cantora Eliane de Grammont, assassinada em 1981 pelo ex-marido Lindomar Castilho. Os dois crimes monopolizaram a opinião pública e, pasmem, no julgamento do assassinato da socialite, a maioria dava razão ao playboy, graças à estratégia do seu advogado, que utilizou a tese da defesa da honra e pintou a vítima como provocadora.  “Foi uma explosão incontida de um homem ofendido na sua dignidade”.

Tempus fugit, como disse o poeta romano Virgílio, e, em 2015, a lei 13.104 alterou essa cruel realidade que considerava a própria mulher culpada pelo crime de que fora vítima. Entretanto, como mecanismo jurídico de proteção às mulheres, a lei só será eficiente à medida em que a sociedade, de perfil claramente machista, se conscientizar da necessidade de quebrar esse ciclo de violência que ultrapassa todos os limites de incivilidade e da estupidez humana.

* Jurista e escritor, pós-doutor pela USP e Universidade Federal de Santa Catarina. É diretor acadêmico da Escola Paulista de Direito. 

 

 

 

 

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