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Justiça Restaurativa: Um novo modelo

Para a advogada Sílvia Maria de Almeida Ribeiro, a Justiça Restaurativa trabalha com ofensor, ofendido, familiares e pessoas da comunidade, para construir possibilidades de reparação dos efeitos dos danos (Foto - Alfredo Risk)

Por Adalberto Luque

Desde 2018 Renata (nome fictício), mãe de dois filhos, era vítima de violência domésticas. Ela já havia elaborado vários boletins de ocorrência (BOs) contra o ex-companheiro. Conseguiu medida protetiva, mas continuava a se sentir insegura.

Até que veio o estopim. Em 2021, nova agressão vitimou também os filhos do casal, hoje com dois e cinco anos de idade. A mulher foi até a Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) para dar nova queixa do ex-companheiro.

“Nesse dia, a Justiça Restaurativa estava retomando o atendimento presencial. Estávamos saindo do período crítico da pandemia. Soube do projeto e fui acolhida. Se não fosse por elas [facilitadoras], teria desistido de levar adiante. Faria mais um BO e não daria andamento. Hoje faço terapia. Meu filho, teve grandes traumas por conta da agressão. Tem acompanhamento psicológico e de outras especialidades. Eu não conhecia essa rede de apoio e isso mudou em 2021”, conta Renata.

O ex-companheiro já foi preso três vezes pela Lei Maria da Penha, a legislação que trata especificamente dos casos de violência doméstica.

“Antes eu vivia em pânico, sem acreditar que algo pudesse mudar. Ele não parou por conta disso. Hoje é procurado e não vivo mais com medo. Se ele descumprir, vou denunciar o quanto for necessário. Mas acho que só cadeia não basta. Temos que olhar também para o agressor, que, muitas vezes, precisa de tratamento para evitar as repetições. Prisão seria em último caso. Ele deveria ser tratado”, desabafa.

Apesar dos momentos que passou, após a intervenção da Justiça Restaurativa (JR), Renata segue a vida trabalhando e vivendo em sua própria casa. Sabe que tem uma rede pronta para intervir a seu favor. Claro, toma os cuidados básicos nos trajetos para o trabalho e para a escola dos filhos. Além disso, é frequentemente acompanhada por viaturas da PM para evitar o ex-companheiro, hoje procurado por descumprir medida protetiva.

Nova justiça

A JR foi instituída oficialmente no Brasil através da Resolução 225 de 31 de maio de 2016, do Conselho Nacional de Justiça. Mas era praticada em Porto Alegre desde 2005.

Em Ribeirão Preto, o Núcleo da Justiça Restaurativa (NJR), órgão municipal, foi instituído pela Lei nº 3010/2019, e é coordenado por um Grupo Gestor, composto por representantes de vários órgãos, como Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, membros da Secretaria Municipal da Educação, Saúde, Guarda Civil Metropolitana (GCM), Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto (ACIRP) e sociedade civil. Perante o Tribunal de Justiça de Ribeirão Preto, a coordenação geral é da 4ª Juíza Titular, Carolina Moreira Gama.

Idealizadora do projeto na cidade, a advogada Sílvia Maria de Almeida Ribeiro é membro do conselho do grupo gestor, supervisora e instrutora de cursos de práticas restaurativas.

Considera a JR um modelo de justiça que prima pela escuta dos envolvidos num conflito ou crime, na busca pelo reconhecimento das causas motivadoras do problema para, numa atuação colaborativa que preferencialmente envolva a comunidade, seja elaborado um plano de ações para a reparação do dano e recomposição do tecido social. Trata-se de um modelo não punitivo, porém de responsabilização dos danos decorrentes da ofensa.

Violência doméstica e menor infrator

De acordo com a supervisora, a JR pode ser aplicada em crimes de menor potencial ofensivo do Juizado Especial Criminal, nos atos infracionais cometidos por adolescentes e em crimes de violência doméstica.

“Em regra, ofensor, ofendido, familiares e pessoas da comunidade, inclusive integrantes da rede de serviços, se reúnem juntamente com um facilitador, para construir possibilidades de reparação dos efeitos dos danos. Todavia, este procedimento pode se diferenciar, como ocorre da violência doméstica, onde, ofensor e ofendida, são trabalhados separadamente”, aduz Sílvia.

A JR conta com salas para atuar onde mais provém a demanda: na DDM e na Delegacia da Infância e da Juventude (DIJU), além de casos da Vara da Infância e da Juventude e da Vara da Violência Doméstica de Ribeirão Preto.

“Com os homens que estão em descumprimento de medida protetiva, atuamos no Projeto Amarelos – gerenciando emoções através de círculos reflexivos sobre temáticas de relacionamento, paternidade, gênero e controle das emoções.”

Facilitadores

Mediar entre as partes é a função dos facilitadores, pessoas capacitadas especificamente para atuação na JR com a função de promover escuta profunda das pessoas envolvidas no conflito ou crime, orientando sobre procedimento restaurativo e convidando demais interessados a participar do círculo restaurativo, tudo por meio de vários encontros.

Na DDM, existe a Sala da Justiça Restaurativa, com facilitadoras atuando nos períodos da manhã e tarde, promovendo o acolhimento das vítimas e orientando sobre serviços da rede de apoio, encaminhando, se necessário, para atendimento psicológico em universidades parceiras. Os facilitadores são formados através de cursos específicos.

Projetos

A Justiça Restaurativa tem quatro projetos básicos em Ribeirão Preto:

– Projeto Re-Start, que promove Justiça Restaurativa nas escolas e tem uma unidade piloto na Escola Municipal Professor Alfeu Luiz Gasparini;

– Projeto Amarelas, atuando junto às mulheres vítimas de violência doméstica, com sala na DDM;

– Projeto Amarelos, com Grupos Reflexivos de casos encaminhados pela Vara da Violência Doméstica, que funciona na DIJU;

– Projeto JR, para a justiça juvenil, nos casos da DIJU.

Todos contam com financiamento privado e alguns aportes feitos pelo Poder Judiciário. “Porém, tais projetos necessitam de mais investimentos para a expansão da equipe, já que contamos com apenas cinco facilitadores”, relata a supervisora, acrescentando que “este modelo, ao proporcionar a transformação dos conflitos por meio do diálogo e entendimento sobre possíveis causas, fomenta a cultura de paz, ao invés da cultura da vingança e da punição. Em todas as áreas em que atuamos, tais práticas possuem um forte impacto positivo nas relações”, conclui.

Medida protetiva

Fernando (nome fictício), foi surpreendido com uma medida protetiva. Sua ex-esposa foi até a DDM e alegou que ele agredia verbalmente a ela e a seu filho de outro relacionamento. Disse que o homem chegava embriagado todos os dias e discutia com ela e seu filho.

A denúncia teria sido, segundo ele, uma atitude da ex-companheira, com quem viveu junto por 14 anos e o objetivo era tirá-lo do imóvel que compraram e dividiam. Um juiz o encaminhou para a Justiça Restaurativa. A mulher também foi encaminhada em outro grupo, mas desistiu após duas reuniões. Ele perseverou e hoje demonstra total gratidão à JR.

“Tive a oportunidade de participar deste grande projeto social, foi uma experiência e um aprendizado maravilhoso. Tive o prazer participar destas reuniões com profissionais, assistentes sociais muito dedicados a este projeto de restauração do homem, e só tenho que agradecer esse período, pois irei levar para toda minha vida”, desabafa.

Parceria importante

O investigador de Polícia Luccas Luciano Serafim Maciel, que atua na Delegacia da Infância e Juventude – DIJU, considera importante a parceria entre sua delegacia e a Justiça Restaurativa.

O investigador Luccas Maciel: “faço o possível, sempre pensando no retorno de um serviço público bem prestado à população usuária do serviço em questão” (Foto: Alfredo Risk)

“Em determinadas ocorrências envolvendo adolescentes, a JR realiza acolhimentos (do adolescente, de familiares, ou mesmo da vítima) e, dentro do possível, eu contribuo nesse processo. Também já participei de reuniões de dois grupos de homens ofensores no âmbito da Lei Maria da Penha. Essas reuniões são chamadas de Círculos e atuei como membro da comunidade”, revela Maciel.

Na opinião do policial civil, os resultados são produtivos. “Reconheço que seja mais um longo processo para o adolescente entender suas ações que eventualmente estão desviantes. E também existe o ponto das questões familiares envolvendo ausências parentais (geralmente da figura paterna). Essas questões tendem a ser uma construção de anos na formação emocional do adolescente, de maneira que determinados comportamentos dito desviantes (ou infracionais para alguns) acabam por ser uma espécie de sintoma dessas situações vividas (ou não vividas – falta de afeto, por exemplo) pelos adolescentes. E essa parte do acolhimento pela JR mostra uma face diferente oferecida pela Poder Público, já que mostra aos adolescentes, familiares e vítimas que existe um olhar para o bem-estar psicológico deles. E isso não quer dizer ser conivente com práticas desviantes, mas sim, fomentar a autorresponsabilização com base no incentivo ao autoconhecimento e reconhecimento de que essas pessoas já passaram por situações difíceis”, observa.

Maciel destaca a importância de um trabalho de acolhimento e de justiça restaurativa. “Faço o possível, sempre pensando no retorno de um serviço público bem prestado à população usuária do serviço em questão. As diretrizes da Delegacia Geral de Polícia (DGP) e da Secretaria da Segurança Pública (SSP) seguem no sentido de que quaisquer atendimentos devem ser prestados com urbanidade e respeito à dignidade da pessoa. Quando sinto que um acolhimento é necessário e que a pessoa tem o interesse, eu faço algo nesse sentido.”

 

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