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Correção da realidade

Começo este texto com algumas perguntas simples: você, realmente, acre­dita que é verdadeiro tudo que vê, seja na televisão ou na web, que é creditado como “ao vivo”? Está mesmo acontecendo e as pessoas estão ali, naquele mo­mento, numa entrevista cara a cara? Apresentador e entrevistado são reais?

Até pouco tempo não haveria dúvida sobre isso, pela impossibilidade técni­ca de se fazer uma manipulação de transmissão ao vivo. Mas, hoje em dia, pra­ticamente todas as transmissões feitas por TVs e outros formatos de mídia estão conectadas, de alguma forma, a uma rede corporativa, suscetível a invasões e interferências telemáticas. Essa possibilidade é real e pode, em futuro próximo tornar-se uma ferramenta poderosa de manipulação política e social. A série “The Capture – A Captura”, realizada pela BBC One a partir de 2020, aborda razoavelmente este tema, mostrando como se poderia interferir em decisões governamentais criando situações onde um “bot” substitui um ministro em suas aparições ao vivo na TV, onde ele é mostrado apoiando exatamente tudo que é contrário ao que pensa e afirmou durante sua vida.

A palavra narrativa, segundo o Dicionário Online (Dicio), significa: “ação, efeito ou processo de narrar, de relatar, de expor um fato, um acontecimento, uma situação (real ou imaginária), por meio de palavras; narração”. Fazer uma narrativa é contar um acontecimento real ou uma estória imaginária. A manei­ra como é feita essa narrativa é que determina se a audiência ou o interlocutor a interpretará como verdadeira, aceitável e justificada.

Uma “narrativa eficiente” deve atingir os objetivos de convencimento que são de interesse de uma pessoa ou grupo. O advogado apresentará sua defesa baseada numa narrativa em que busca inocentar o réu, enquanto o promotor apresentará sua narrativa de uma maneira oposta a esta. Caberá ao juiz, à luz das provas apresentadas, desvendar qual das duas é mais razoável e tem mais verossimilhança. Um político apresentará sua narrativa para justificar suas propostas, enquanto seu adversário tratará de refutá-las e afirmar que as suas são melhores que as do outro. Nos dois casos, vemos narrativas diferentes, contrárias entre si. Uma trata do passado, um crime anteriormente cometido; a outra trata do futuro, do uso do dinheiro público para o bem de todos. São narrativas diferentes sobre um fato (o crime – passado) ou sobre os desejos da população (o discurso – futuro). Em comum, temos que, nos dois casos, a reali­dade tem duas interpretações distintas. Qual é a mais verdadeira? Existe mesmo a Verdade única?

O termo Correção, que é o mote da série citada, aborda a necessidade de grupos no poder, de gerar narrativas que justifiquem a intervenção preventiva do Estado, utilizando tecnologias que convençam a população, mesmo que a re­alidade (passada ou futura) seja manipulada de acordo com os interesses desses grupos. Câmeras de segurança, reconhecimento facial e predição psicológica, usados por um grupo de agentes “corrigiriam” ações capturadas pelas câmeras, criando situações fictícias “ao vivo”, utilizando bots e cenários criados por Inteligência Artificial.

Para criar um ambiente receptivo a essas manipulações, usa-se as técnicas já conhecidas de manipulação de mensagens para que a audiência seja direcionada a aceitar o que vê e ouve como “realidade”. Essas técnicas são de ampla utili­zação há mais de um século e foram sendo desenvolvidas principalmente pela publicidade. Uma imagem trágica pode trazer aversão, assim como pode gerar compaixão. Basta que se apresente aquela imagem, usando textos, locuções, áudio e técnica de edição que direcionam para um lado ou outro.

“Bichos-papões” políticos são criados a todo momento por quem tem inte­resse em demonizar personalidades políticas opostas. É uma das técnicas mais comuns na narrativa política no mundo da web e das transmissões televisivas e de rádio. “Fulano” é o demônio e mais demônio será a cada nova publicação ou programa exibido. A partir daí se cria o ambiente que apresenta todo o mal que acontecerá se o tal “demônio” tiver o poder, provocando na audiência o pri­marismo desejado, através da repulsa, do medo e da autodefesa. Criar a dúvida, transformá-la em verdade, esse é o objetivo.

Imagine um debate ao vivo entre dois candidatos, onde uma emissora transmite corretamente com os dois candidatos reais; outra mostra, também ao vivo, o debate com um candidato “real” e outro que é um “bot” manipulado. No fim, quem viu em uma TV não viu o mesmo de quem viu na outra. Se fizermos uma pesquisa, será que haverá unanimidade de que um debate foi verdadeiro e o outro falso? Hoje é possível, mas ainda é muito difícil interferir diretamente nas transmissões em tempo real. Ainda…

O Brasil já tinha o troféu mundial de maledicência e manipulação de notícias em uma eleição. Em 2022 acrescentamos o galardão de candidato mais espúrio e inventado, com o padre armênio. Foi um “bot” real, em carne e osso, inserido ali, de crucifixo e batina, para bagunçar a eleição e ajudar um candida­to. Tentativa ridícula, mas o tal “padre fake” acabou sendo citado em pesquisas e recebeu dezenas de milhares de pedidos de bênção em suas redes sociais.

Melhor ficar esperto, aqui os limites para a manipulação política da web são bem mais porosos que na maioria do mundo.

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