Tribuna Ribeirão
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O Chile e sua literatura (22): Marcela Paz

Rosemary Conceição dos Santos*

 

Marcela Paz (1902-1985) foi o pseudônimo de Esther Huneeus Salas de Claro, escritora chilena de literatura infanto-juvenil. Oriunda de família abastada, desde a juventude refugiou-se na solidão e na imaginação, principalmente aos 11 anos, após a morte de Anita, sua irmã mais velha. Sem nunca ter frequentado uma escola formal, sua educação foi deixada a cargo de governantas. Em 1929, viajando para França, frequentou, por alguns meses, cursos de artes plásticas, os quais, quando de volta ao Chile, motivaram-lhe a iniciar seus trabalhos literários, seu trabalho com esculturas e seu pouco conhecido trabalho social. Indicada como autora infanto-juvenil nas revistas Lectura, El Peneca, Ecran, Zig-Zag, Eva y Margarita, bem como, em jornais como La Nación, El Diario Ilustrado, El Mercurio y La Tercera, Ester Huneeus começou a publicar sob o pseudônimo de Marcela Paz, pseudônimo sob o qual alcançou a fama. Anteriormente, entretanto, outros pseudônimos, como Paula de la Sierra, Lukim Retse, P. Neka e Juanita Godoy foram utilizados por ela para suas publicações. Em 1933, Paz publicou seu primeiro livro de contos “Tiempo, papel y lápis”, que obteve boa recepção da crítica. No mesmo ano, contrariando a sua ideia de não casar, contraiu matrimônio. De acordo com especialistas, Papelucho, cujo personagem homônimo é o mais famoso da literatura infantil chilena – é um sucesso desde sua primeira publicação em 1947. Segundo o Memoria Chilena, tem, o mesmo, mais de 70 reedições. Esther Huneeus começou a escrever o diário de Papelucho em 1935, quando tinha pouco mais de 30 anos, em agenda que lhe foi dada pelo marido, José Luis Claro (que se chamava Pepe Lucho). Em 1947, a editora Rapa Nui organizou um concurso de redação para crianças e Esther Hunneus participou com Papelucho, sob o pseudônimo de Marcela Paz (Marcelle Auclair era uma de suas autoras preferidas). Hunneus ganhou um lugar honorário no concurso, sendo  publicado em livro nesse mesmo ano, fazendo muito sucesso com sua série de 12 aventuras de Papelucho, até 1974. 

Ainda segundo especialistas, a particularidade de Papelucho — ilustrado pela irmã de Paz, Yolanda Huneeus — é que o personagem não é uma criança exemplar. Ele é divertido e criativo, mas também travesso. As crianças facilmente se sentem como um deles. Papelucho também fala chileno coloquial, uma língua que lhes é próxima. Marcela Paz tinha consciência da importância da linguagem: “Comecei a ler os clássicos espanhóis para adquirir uma maior riqueza de linguagem, depois coloquei linguagem pura (a Papelucho) e perdeu-se a espontaneidade, a veia humorística e a minha própria linguagem tinha ido para as panelas; então preferi continuar escrevendo como nasci”, disse a escritora em entrevista. Papelucho, segundo especialistas, tem muito humor, mas também é um personagem complexo. Ele é solitário, não vive uma infância idílica. “O mundo de Papelucho, em sua primeira encarnação, é hostil, congelado. A criança está tão sozinha que escreve para aliviar sua confusão, para se entender”, escreve Álvaro Bisama em “Cem livros chilenos”. Papelucho é obcecado por temas como morte e doença, e não há figuras paternas para confortá-lo. “Inicialmente Papelucho era filho de pais divorciados. A autora achava que uma história como essa pensada para crianças poderia ter problemas com a censura, a educação e a Igreja Católica. Seria um livro perturbador. Assim, Marcela Paz reescreve Papelucho e reúne no livro os pais separados, suprimindo o divórcio, que era um assunto tabu na vida social, embora mantenha a ideia de pais distantes e distantes”, escreve o pesquisador Manuel Peña sobre “Papelucho”. Para estudiosos, Papelucho também não encontra consolo na fantasia, o que o diferencia de outros personagens infantis. “Papelucho é diametralmente oposto a Harry Potter”, disse o escritor chileno Darío Oses, “que tem acesso a um mundo de magia; Papelucho é como Dom Quixote, que se choca com a realidade. A realidade o incomoda, ele está sempre em conflito com os adultos. Não com os adultos do mundo popular, mas com os que representam a autoridade: com os pais, com os padres da escola, com os professores”. Isso explica porque, para muitos adultos, Papelucho não era bem visto no início. Em suas diferentes aventuras, Papelucho nunca cresceu. Ele nunca completou mais de 10 anos. Quando Marcela Paz tentou escrever sobre o adolescente Papelucho, achou-o um personagem insuportável. Também não podemos imaginar personagens como Pipi Longstocking , de Astrid Lindgren, ou Max, o protagonista de Where the Wild Things Are , de Maurice Sendak, serem grandes. Coincidem em serem personagens com uma certa rebeldia que, presumivelmente, não estaria em harmonia com o mundo adulto. Quando perguntaram a Sendak o que aconteceu com Max quando ele cresceu, ele respondeu com humor: “Bem, ele está em terapia para sempre. Ele tem que usar uma camisa de força quando está com seu terapeuta. 

Por sua vez, ainsa segundo estudiosos, “Marcela Paz não tem sido reconhecida em toda a sua dimensão, mas apenas como autora dos romances sobre Papelucho”, segundo artigo da académica Isabel Ibaceta no novo número da revista Umbral, dedicado a Marcela Paz. Ibaceta recupera outras obras de Paz e destaca que, antes de publicar “Papelucho”, em 1947, a escritora já tinha algum reconhecimento literário. Em 1927, por exemplo, foi premiada pelo Pancho en la Luna (Prêmio da Saúde) e, em 1934, por um conjunto de contos intitulado “Ensaios” para um concurso (Prêmio do Clube Equestre). Também foi elogiada pela crítica por seu primeiro livro de contos, “Tiempo, papel y lápiz” de 1933. Mais tarde, em 1954, Paz publicou um livro de poesias, “Caramelos de Luz”. A história “Folhas de jornal”, publicada por Paz em seu livro “Soja Colorina” (1935) — e incluído integralmente na revista Threshold—, não é pensado para crianças, mas tem uma menina como protagonista. O que fica claro é que o olhar crítico de Paz sobre a família e a infância não é exclusividade de “Papelucho”, mas, como diz Ibaceta, é algo transversal em sua obra. “Sou de raça ruim”, escreve o jovem protagonista da história “Folhas de um diário”, de pais divorciados. Meu sangue não é muito legítimo ou puro. Sinto muito, porque tenho que lutar constantemente contra os maus instintos. Meus maus instintos agora me inclinam a não amar minha mãe. Li ontem à noite: Quando os filhos julgam os pais, raramente os perdoam. E eu julgo minha mãe. Acho-a frívola e egoísta e não gosto dela. Ou seja, há uma semana descobri que não a amo, e é muito triste não amar ninguém. Por que Marcela Paz foi estigmatizada em “Papelucho”? Por que tanto de seu trabalho ainda é desconhecido hoje? Ibaceta arrisca uma resposta: “O fato de Paz ser mulher, de ter se tornado conhecida por suas séries de romances para meninos e meninas, de ter uma posição crítica em relação a questões de sexo-gênero e classe, entre outras, provavelmente contribuíram para que seus textos recebessem pouca atenção”. Ainda há um atrativo a ser explorado na obra de Marcela Paz. 

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