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O Chile e sua literatura (20): José Donoso

José Donoso (1924 – 1996) foi um romancista, contista, professor e jornalista chileno que trabalhou na revista chilena Ercilla (1960-65) e colaborou com a mexicana Siempre, ao longo de sua carreira. Aos 33 anos, enquanto vivia com uma família de pescadores, publicou seu primeiro romance, “Coronación”, na qual realizou uma descrição magistral das classes abastadas de Santiago e sua decadência. Tal a fidelidade da obra em retratar a época, e as duras condições de vida, no Chile que não tardou ser publicada nos EUA. Em 1961, casando-se com María del Pilar Serrano, mudou-se para a Espanha, onde residiu de 1967 a 1981, ali publicando “El obsceno pájaro de la noche (1970), considerado um de seus melhores trabalhos e, certamente, o de maior inspi­ração e ambição literária. Em 1972, seu ensaio “Historia personal del «Boom»” e, em 1973, as noveletas “Tres novelitas burguesas”, angariaram-lhe grande atenção da crítica. Em 1978, “Casa de campo”, romance de crítica sutil à ditadura chilena, obteve o Premio de la Crítica no ano seguinte, e, em 1979, seu romance erótico “La misteriosa desaparición de la marquesita de Loria” (1979), demonstrou, para alguns, que não dominava todos os gêneros literários com igual maestria. Não obstante, “El jardín de al lado” (1981) e “La desesperanza” (1986) recuperaram o brilho de um dos mais impor­tantes autores da literatura chilena na segunda metade do século XX.

Membro da Academia Chilena de la Lengua, foi, em 1981, um dos primeiros escri­tores chilenos a instalar uma oficina literária no Chile, desta participando escritores como Arturo Fontaine Talavera ( Santiago, 1952), romancista, poeta e ensaísta, considerado um dos es­critores mais representativos da “Nova Narrativa” chi­lena, surgida na década de 1990, e Carlos Franz (1959 – ..), escritor chileno, que também possui cidadania espanhola, que viria a ser autor de “El desierto”, um dos romances mais originais produzidos na literatura latino-americana moderna. O Premio Iberoamerica­no de Letras José Donoso, organizado pela universi­dade de Talca e auspiciado por Santander Santiago, é concedido anualmente por um júri internacional, em memória do romancista José Donoso, à obra de um destacado escritor de letras ibero-americanas, nos gêneros de poesia, ficção, teatro ou ensaio latino-americano, em idioma espanhol ou Língua portuguesa.

Em “El obsceno pájaro de la noche (1970), personagens que se confundem entre o humano e o monstruoso, levam ao extremo a possibilidade de morte final e desin­tegração do sujeito, concebido como uma instância niilista de libertação. Segundo especialistas, outra das características marcantes deste romance é o seu caráter fragmentário e heterogêneo, que permite a exploração de realidades desconhecidas e a expressão de processos impossíveis de serem contidos em uma história linear. Desta forma, o texto surge como um “tagarelar” proveniente de zonas elementares e profundas da existência a que se somam múltiplas vozes que fazem do romance um espaço amplo e inclusivo para vários discursos. No romance, os limites do discurso histórico e do sujeito vão se dissolvendo no texto, de forma que as intrigas possam ser entendidas como metáforas do real.

Um trecho? “Claro que não, não adianta. Senta-se na beira da cama e cobre o rosto com as mãos, enquanto a misiá Raquel te ouve, arrasada porque você inventa, Inês, você sempre foi uma contadora de histórias, você tem vocação de velha, é só questão de deixar a velha surgir e tomar conta de você, por isso misiá Raquel te ouve sentada bem ereta na cadeira com a maleta no colo, agarrada firme com os dois mãos porque nem ela nem ninguém pode acreditar que até a sua idade você teve sangue todos os meses, sangue sujo e regu­lar que me escravizou como uma criança, na minha idade, como se fosse castigo de Deus por alguma coisa horrível que eu fiz e que eu não te lembras, todos os meses, com insistência, não sabes como eu rezava, sobretudo quando ela era mais nova e esperava dar um filho a Jerónimo,Rezamos e rezamos com Peta Ponce, salve vai e salve vem, nosso pai em linha e nosso pai ao contrário, orações que nós mesmos inventamos para implorar misericórdia a quem quisesse dar, escapulários com relíquias de não sei quem Peta costurou meus corpetes Você não pode imaginar como rezamos com Peta para que este mês, finalmente, meu sangue não me sujasse, anunciando assim minha purificação e o advento de Boy, escravo imundo de meu sangue até os sessenta e três anos, não chores mais, Inés, que Misiá Raquel te console sem conseguir porque continuas a chorar e a chorar, todos os meses a esperança de que naquele mês a tua feminilidade finalmente se esgotou, que terias paz para começar a en­velhecer como todos senão, mas não sem trégua, sangue todo mês… um monstro, Raquel, um monstro. O ruim é que Jerônimo sempre foi fascinado por monstros”.

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