Por: Adalberto Luque
Depois de ter tratado um novo projeto através de aplicativo, a arquiteta se dirige ao imóvel para conhecer o local e elaborar o orçamento da cliente. Ao bater na porta da casa, no bairro Higienópolis, zona central de Ribeirão Preto, é atendida por um homem.
A arquiteta pergunta pela mulher com quem havia combinado tudo. Ele diz que é sua esposa, que a espera no interior da residência. Era abril de 2022. Ao entrar na casa, a arquiteta é dominada e estuprada pelo homem, preso quase um ano depois, em 07 de março deste ano, após rigorosa investigação da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM).
O homem havia visitado uma imobiliária se dizendo interessado na locação da casa. Fez a cópia da chave e marcou com a arquiteta. O acusado de estupro já tinha várias condenações que somam 93 anos de prisão por crimes de estupro e assaltos em estados do nordeste brasileiro, como Pernambuco, Ceará e Paraíba.
Este caso seguiu o roteiro que muitos imaginam ser o mais comum em se tratando de estupro: a vítima é atraída ou levada à força para um local ermo, onde é violentada sexualmente. Desde 2020, contudo, esse quadro mudou por demais.
De acordo com o estudo “Sem deixar ninguém para trás”, do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), vinculado à Fundação Oswaldo Cruz Bahia (Fiocruz), 62,41% dos autores do crime eram conhecidos das vítimas, contra apenas 17,22% de desconhecidos.
O mais assustador é que, além de praticado por conhecidos, os estupros ocorrem, em sua maioria, na casa das vítimas. No total, 63,16% dos episódios se deram nesse contexto. Em 24,8% das vezes, o local era público e, em 1,39% dos casos, o estupro ocorreu em uma escola. Também assinam a pesquisa o Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).
O perfil é formado majoritariamente por meninas pardas (54,75%). Logo depois, aparecem garotas brancas (34,3%), pretas (9,43%) e, por fim, indígenas (1,2%).
Aumento de 575%
Em Ribeirão Preto, o ano de 2023 começou com uma constatação: os casos de estupro atingiram números recordes. No primeiro trimestre de 2023, o total de casos foi o maior desde que as estatísticas passaram a ser divulgadas pela Secretaria da Segurança Pública (SSP), em janeiro de 2001.
Somente neste primeiro trimestre de 2023, foram 54 casos. A cidade registrou um estupro a cada 40 horas. Outro dado estarrecedor: 70% das vítimas de estupro em Ribeirão Preto são vulneráveis, isto é, menores de 14 anos ou que não possuam condição física ou psicológica para impedir o abuso.
No primeiro trimestre de 2020, foram registrados oito casos de estupro. Isso significa que, nestes quatro anos, os casos explodiram em 575%. Em relação às vítimas vulneráveis, o crescimento foi ainda maior. Em 2020 foram cinco casos de vulneráveis, contra 38 em 2023. Um aumento de 660%.
Segundo o promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo (MPSP), Cláudio José Baptista Morelli, o crescimento estarrecedor de casos de estupro, sobretudo contra vulneráveis, pode significar que a subnotificação vem sendo combatida.
“O aumento dos casos de estupro é preocupante, mas, por outro lado, demonstra ser fruto da maior conscientização da população, decorrente do intenso trabalho realizado pelas autoridades, sociedade civil e imprensa no combate à subnotificação, tanto dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, quanto dos casos específicos de estupro e outros crimes sexuais. Importante anotar que as pessoas estão mais conscientes e orientadas em relação as condutas abusivas que caracterizam o crime de estupro (ao contrário do que ocorria há algum tempo em que a consciência coletiva via como estupro apenas a prática da conjunção carnal). Atualmente, quando se fala em estupro (mormente o estupro de vulnerável), há uma série de condutas abusivas que caracterizam tal delito, não apenas a conjunção carnal. As mais diversas condutas libidinosas, ainda que não deixem vestígios, podem caracterizar o crime de estupro de vulnerável, daí porque, conscientes de tal circunstância, as vítimas (ou familiares) dessas repugnantes condutas têm maior consciência e sentem-se mais seguras para formalizar uma denúncia e buscar o apoio das Autoridades, ocasionando o aumento nos registros desses crimes sexuais, que, anteriormente, eram subnotificados” revela.
Morelli considera o grande número de estupros de vulneráveis um dado extremamente preocupante, sobretudo por serem praticados no ambiente familiar, longe do alcance dos agentes de segurança e autoridades, dificultando, muitas vezes, a prevenção. Diante disso, o MPSP e o Juízo da Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, têm procurado agilizar as apurações dos crimes praticados contra vulnerável.
“Atualmente, o procedimento é mais célere, pois registrada a ocorrência de estupro de vulnerável e instaurado o inquérito policial na delegacia de polícia, na mesma ocasião é proposta a medida cautelar para a colheita do depoimento especial da vítima em juízo por psicólogas e assistentes sociais, oportunizando a pronta colheita de suas declarações, trazendo eficácia na colheita da prova e eficiência na responsabilização do agressor, além da adoção das medidas de acolhimento e encaminhamento da vítima para amenizar o trauma e as sequelas psicológicas decorrentes da prática delitiva”, explica.
Zona Norte
De acordo com registros da SSP, a região mais violenta é a zona Norte. A área do 5º Distrito Policial (DP) concentrou o maior número de casos de estupro em relação às outras delegacias. No primeiro trimestre de 2023, a área registrou 15 estupros, sendo 12 deles praticados contra vulneráveis. Em seguida vem o 6º DP, na zona Oeste, região da Vila Virgínia, com 12 casos, oito dos quais de vulneráveis.
Em Ribeirão Preto, de 2020 até 2023, considerando apenas o primeiro trimestre de cada ano, 123 pessoas foram vítimas de estupro. Foram 46 mulheres e 77 vulneráveis.
Rede de proteção
De acordo com o promotor, Ribeirão Preto conta com uma rede protetiva composta por diversos órgãos públicos, organizações não governamentais e sociedade civil. Ele cita o Núcleo de Atendimento Especializado à Mulher (NAEM), da Prefeitura; o Serviço do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (SEAVIDAS); psicólogas da Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, cedidas pela Prefeitura, entre outros. O MPSP ainda possui o Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência (NAVV), em processo de instalação na cidade.
Para a delegada Jamila Jorge Ferrari, coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher, os dados podem representar um grande avanço no que diz respeito à confiança da vítima no trabalho da Polícia.
“O crime de estupro é um dos mais subnotificados, tese comprovada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e vários outros institutos que estudam o tema. Portanto, o número de estupros pode ser até quatro vezes maior do que o que temos registrado. Porém, a constante divulgação de informações sobre esses crimes, como denunciar, sobre direitos e possibilidades das vítimas aumentam os registros, pois as vítimas entendem e se fortalecem em denunciar”, explica a delegada.
“O aumento no registro de casos verificado no primeiro trimestre desse ano preocupa, faz com que o Ministério Público, o Judiciário, Polícia Civil e Militar, estejam atentos e adotando medidas para entender e procurar diminuir tais ocorrências (além de punir os agressores), mas também revela que a sociedade, como um todo, não tem mais se calado diante de tão repugnante prática, buscando as autoridades para o registro das ocorrências e punição dos agressores”, conclui o promotor.
Estimular denúncia
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que intensificou ações de enfrentamento ao estupro para reduzir a subnotificação dos casos e estimular a denúncia contra os agressores.
“O estado conta 140 Delegacias de Defesa da Mulher, sendo 11 em funcionamento ininterrupto, além de 77 Salas DDMs 24 horas, que ficam anexas aos plantões policiais dos municípios, onde a vítima é atendida por uma equipe da DDM online por videoconferência”, informou em nota.
Em relação aos estupros de vulneráveis, a SSP revela que, em 2022, a maioria dos casos registrados teriam ocorrido em contexto privado, praticados por pais, padrastos, avôs e “vodrastos”.
“Uma das explicações para o aumento dos casos nos últimos anos, se deve, além da conscientização das vítimas que passaram a denunciar seus agressores, como também ao alargamento do escopo da legislação, agregando outros conceitos ao crime de estupro. A pasta ressalta que em 2022, 11 pessoas foram presas por estupro apenas na cidade de Ribeirão Preto, e nos dois primeiros meses deste ano, quatro prisões foram realizadas” finaliza.