Foi lançado pela EDUSP o livro chamado “Ensaios de Karl Philipp Moritz”, organizado pelo Professor e tradutor José Feres Sabino. A obra tem como chave o estudo da “palavra” transformada na porta para acesso à realidade humana: se não houvesse “palavra”, a humanidade não aprenderia a lidar com a sua realidade, daí resultando a incompossibilidade de ser instalada qualquer espécie de convivência.
Atrevo-me a realizar um modesto comentário sobre o livro, lançando em palavras aplausos ao trabalho realizado tanto por José Feres Sabino como por Moritz.
O livro é dividido em dois momentos. O primeiro estampa um ensaio assinado pelo professor Sabino. O segundo soma o conjunto de vários estudos deixados por Moritz, um dos quais, que destaco, pois tem como alvo o exame da linguagem revelada pelo profeta Moisés.
Há algum tempo que os estudiosos examinam a linguagem usada pelos judeus, liderados por Moises, quando, com suas numerosas famílias, fugiram do Egito, atravessando a pé toda a enorme península arábica, até alcançar a Terra Prometida, estendida logo após o Monte Nebo.
No alto do Monte Nebo há dois monumentos. Um refere-se ao báculo usado por Moisés, que hoje foi convertido no símbolo da ciência médica. No outro monumento está inscrito “unus Deum, pater omnium, super omnes”, que poderia ser traduzido como “um só Deus, pai de todos, sobre todos”. O lema é endereçado às três religiões monoteístas: 1) o cristianismo; 2) o judaísmo; 3) o islamismo. Todos os fiéis das três religiões acreditam no mesmo Deus, o que não foi suficiente para que membros delas tenham entrado na história da humanidade matando uns aos outros, até os nossos dias.
Há um momento importante registrado no Monte Nebo, quando, lá do alto, Deus mostra a terra prometida para Moisés, matando-o então. Mas antes da execução o Senhor ordena Moisés que envie Josué ao outro lado do rio Jordão, para que sejam desmontadas as muralhas daquela cidade, com a obrigação de matar todos os seus homens, todas as suas mulheres, até os cabritos, menos as prostitutas que sempre foram aliadas dos judeus, conforme registra o texto bíblico.
Josué cumpriu a ordem: “Cada um entrou pelo lugar que estava à sua frente, e assim tomaram a cidade matando tudo que nela havia homens, mulheres, jovens e velhos, bois, ovelhas e jumentos, tudo foi passado na espada” (Josué, 5-6-7). Menos as prostitutas!
O mestre Sabino sentencia que para Moritz “o passado não é passado pois imprime suas marcas nas gerações que o sucedem, assim como a Antiguidade não envelhece porque pode e deve ser rejuvenescida pela imaginação vindoura”.
Portanto, a norma jurídica como a moral que regem um povo que atravessa a vasta península arábica a pé, sem casa para morar, sem cemitério para os seus mortos, sem relações comerciais, deverá alterar a palavra que marcará a sua sociedade ao fixar-se na Terra Prometida, eliminando todos os habitantes de Jericó. Os habitantes antigos de Jericó, já estabelecidos em torno tanto de muralhas físicas como jurídicas e religiosas estavam muito mais civilizados do que aqueles que, com a força das suas palavras chegavam do deserto, agora sob o comando de Josué.
Olhando para a linguagem que não surpreendeu Moisés quando “nas sarças ardentes” indagou quem ali estava, recebendo como resposta um tema até hoje irresoluto pela filosofia: “Eu sou aquele que sou”. O grande mestre quebra as pedras das palavras: “Ao narrar o surgimento do mundo em si, porém narrou fundamentalmente nada mais do que o surgimento ou a criação desse mundo na representação do homem. Como este conseguiu aos poucos, formar, por meio do diferenciar e do nomear, ou seja, pela linguagem, um conceito cada vez mais claro do mundo”. E da sua existência. Nossos aplausos tanto a Sabino como a Moritz.