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Cultura

Resenha do romance ‘Cenas de um amor imperfeito’, de Menalton Braff

Menalton Braff tem no seu currículo, entre outros prêmios, um Jabuti e o Machado de Assis da Biblioteca Nacional, o que faz dele um escritor de voz relevante, com lugar assegurado na literatura de nosso país

a resenha do romance ‘Cenas de um amor imperfeito’, publicado em 2021, e feita por Wagner Coriolano de Abreu, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ

Confira a resenha do romance ‘Cenas de um amor imperfeito’, publicado em 2021, e feita por Wagner Coriolano de Abreu, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ:

Para quem abre a primorosa edição de Cenas de um Amor Imperfeito, imediatamente encontra uma breve dedicatória e depois vem a epígrafe, com a citação de um parágrafo do Sermão do Mandato (1645), de Antônio Vieira. O romancista recupera a ideia de amor fino, desenvolvida pelo padre das Letras, despertando em quem lê uma atenção contrastiva, entre imperfeito e fino, sobretudo quando se diz “quem ama não porque o amam, nem para que o amem, esse só é fino”.

Ao retomar o Sermão, a fim de buscar o entorno da citação, o leitor descobre que Vieira está comentando um tratado sobre o amor de Deus: “Ora vede: Definindo S. Bernardo o amor fino, diz assim: Amor non quaerit causam, nec fructum” (O amor não busca causa nem fruto).1 Descolada da exegese primeira, a expressão “amor fino” se torna o contraponto para o amor imperfeito. Se ficar na citação, deixando o corpo do romance a esperar – romance feito de cenas, sem sequência numérica de capítulos –, o leitor circulará em torno de razões do amor, como no poema de Carlos Drummond de Andrade, que trata das sem-razões do amor. Tanto no poema como no romance de Menalton Braff, sobressaem os sentimentos humanos em face do amor. O romance encena um casamento. 1 Sermão do Mandato, pregado na Capela Real, ano de 1645. Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim, Edelbra, 1998.

Na literatura de Menalton Braff, o tema do amor e do casamento não são novos, sendo o presente romance antecedido recentemente pelos contos de Amor Passageiro (2018) e pelo romance Além do Rio dos Sinos (2020), com trama de casais, vencedor do Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. A prosa literária de Menalton 183 engloba o período anterior ao primeiro livro, tempo em que não pode assumir o verdadeiro nome, durante a ditadura civil-militar, desde a estreia em Janela Aberta (1984), com o codinome Salvador dos Passos. Ainda desse período é o livro de contos Na força de Mulher (1986), “um punhado de pequenas-grandes estórias curtas” como observa Caio Porfírio Carneiro. Nascido no interior do Rio Grande do Sul, o escritor residiu na capital, onde realizou estudos na Universidade Federal, até ser perseguido e se tornar clandestino. No final dos anos 1990, retoma o nome próprio com a publicação de À Sombra do Cipreste (1999), livro de contos com que ganha o Prêmio Jabuti de Literatura em 2000.

Após o livro de estreia com nome próprio, a literatura de Menalton Braff ocupa praticamente todos os anos do século 21, numa profusão de gêneros literários, quadro em que aparecem contos, romances, história infantil e novela juvenil, por diversos selos editoriais. O romance Cenas de um Amor Imperfeito joga luz sobre o antigo problema do casamento, tema atravessado pela crítica mordaz de escritores como Machado de Assis, Clarice Lispector e Marcel Proust, nomes que aparecem como leituras de cabeceira do escritor, conforme entrevista à Revista Macondo. 22 https://revistamacondo.wordpress.com/2012/04/08/retrospectiva-entrevista-com-menalton-braff/. Acesso em 21 dez. 2022.

O parágrafo que inicia o romance reaparece ao final do livro, seguido de duas linhas como chave de leitura que destranca um sentido, dado aos poucos nas inúmeras idas e vindas de um casamento tradicional. A metáfora clichê do juramento de casal, com promessa de amor perene, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, se fragilizaperante a ladeira escorregadia na vida cotidiana de Roberta e Gustavo. O leitor é colocado desde a cena de abertura, in media res, dentro da crise. “Como chegamos aeste ponto, nós dois, como pôde acontecer tudo o que aconteceu, se há pouco mais de dois anos seria absurdo pensar em tais possibilidades?, que itinerário percorremos inscientes para que não percebêssemos o que sucedia conosco?, essa ladeira escorregadia em que se tornaram nossas vidas?” (p. 9).

A não ser pela oposição santo/demônio, que se lê ainda neste início, a tomada do casamento como amor imperfeito não estabelece uma relação direta com repertórios moralistas, mesmo que explore impasses do casamento no mundo contemporâneo. 184

Todavia, a narradora Roberta, que transita pelas cenas compositivas do romance como protagonista, tangencia a questão da culpa em passagens como a que dá a simetria entre amor e casamento: “Não sei por que fico remoendo na memória ferida tantas cenas de nosso amor imperfeito” (p. 91).

Na perspectiva do relacionamento tradicional de casais, circulava informalmente uma grade de transição temporal, desde o despertar até o perpetuar de um vínculo, pois o que se visava justamente era a permanência. Por diversos motivos, desde o bem-estar e futuro para os filhos até a manutenção de um modelo de sociedade, de família. “Namoro não é noivado, noivado não é casamento”, se dizia. Embora o romance coloque em cena o casal de pais de ambas as partes e o casal de amigos, a formação de vida a dois, conforme aquele preceito, se aplica aqui ao casal de protagonistas. Se conheceram na rua, dentro de uma farmácia, depois ele foi residir numa edícula ao lado da casa dela, ainda amigos. Quando o namoro se estabeleceu, tanto a família de Roberta como a sociedade circunvizinha redobraram a atenção nos dois. Os outros casamentos no romance permanecem na cortina de fumaça.

Tiveram o tempo de namoro, de ajustar interesses e pôr em execução o ideal de construir a casa própria, após o noivado. “Casar e ficar pagando dívida ou aluguel, não fazia parte de nossos projetos. E nisso eu tinha apoio completo do Gustavo. Houve épocas, naquele primeiro ano, em que tive até três empregos” (p. 43). Foi um tempo de variações emocionais, entre ciúmes e carícias, dilemas decorrentes da moral para a vida íntima de casais, incompatibilidades em face do projeto de vida profissional. Apesar das dificuldades até então, eles se casam. E da relativa alegria mudam para a tristeza. “Não demorei muito até perceber que o humor do Gustavo, depois do casamento, começava a piorar. De um estado próximo à euforia ele desandava para um comportamento estranho, o corpo encolhido, ele todo encasulado, mudo, com o ódio preso em sua boca” (p. 61).

O corpo do romance, constituído de cenas que exploram avanços e recuos na narração, desfaz a estabilidade de um roteiro esperado, proporcionando ao leitor uma crítica a partir do conhecimento da psique humana, janela aberta pela narradora insatisfeita que busca o auxílio de um psiquiatra. Cenas de um Amor Imperfeito é literatura sintonizada com a tradição literária, mas marcada por rupturas que se colocam 185 perante as normas. Escrito em língua culta, introduz variações de notação linguística: “– Olhaqui, Gustavo, você foi bastante injusto comigo, foi grosseiro, e isso eu não posso admitir” (p. 15). Igualmente, tratando de uma realidade cotidiana, girando em torno de conflitos existenciais, se vale da noção de cultura clássica antiga: “Mais tarde, muitas vezes, me diria que tinha vontade de morrer, mas nunca entendi seus lamentos como acusação a mim pelo fato de o ter livrado da moira, a insaciável” (p. 129).

A presença dos laços parentais é determinante neste romance. Roberta reencontra na mãe uma saída para a etapa bastante ruim do casamento, quando ela e o marido já ultrapassavam a barreira do bom senso, em direção às ofensas pessoais e desgastes psicológicos. Por outro lado, o reencontro de Gustavo com o pai, no leito de morte, não o demoveu da recusa da própria doença. Ao longo do romance, mais de uma vez, eles se afastaram e após a reconciliação fizeram amor, como na cena de quando ela retorna para casa, depois de uma temporada com a mãe. “Naquela noite a televisão ficou desligada e inútil no escuro da sala. Também resolvemos jantar mais tarde. Nossa fome, no momento, era um do outro. E sem explicação nenhuma, resolvemos satisfazê-la. Nus sobre o lençol, o Gustavo, olhando para o teto. Falou como nunca em sua vida tinha falado” (p. 133). Mas o se dar bem na cama não bastou para suprir o imperfeito do amor, sendo que o desfecho estampa uma saída aparentemente sem remorso.

Em “As sem-razões do amor”, o poeta Carlos Drummond de Andrade carrega elementos do amor fino, nos primeiros versos da quarta estrofe “Amor é primo da morte, /e da morte vencedor”,3 mesclando esta variação antiga com a perspectiva da teoria de Freud, referente à explicação do desejo, como aparece nos versos finais da mesma estrofe: “por mais que o matem (e matam) /a cada instante de amor”. O romance de Menalton Braff coloca ao leitor estas veredas.

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