Tribuna Ribeirão
Artigos

Terra!

Nélida Pinon nos deixou. Seus livros foram traduzidos para algu­mas dezenas de idiomas. Recebeu cerca de 30 prêmios em reconheci­mento da qualidade de sua produção literária. Entre eles dois prêmios Jabuti e um Príncipe das Astúrias de Las Letras. Tive a honra de co­nhecê-la e acompanhá-la para um café em reunião na Reitoria da USP. Este breve encontro aumentou de minha admiração pela escritora. Ela partiu a 17 de dezembro, com 85 anos e só o fez depois que recebeu em hospital de Lisboa, onde estava internada, a visita da Suzy e da Pilara, suas duas cachorras de estimação.

Três de seus livros, “Coração Andarilho”, “O Livro das Horas” e “Uma furtiva lágrima”, relatam suas memórias de maneira criativa e inovadora. Em “Lágrimas furtivas” descreve seu grande amor a um cão registrado como Gravetinho Pinon ao qual ela dedica o livro “in memoriam”. Gravetinho morreu há alguns anos e suas cinzas, que ela conservava em seu escritório, serão sepultadas junto com ela no Mau­soléu da Academia Brasileira de Letras (ABL). Somente Gravetinho, e mais recentemente a cadela Resistência, que subiu a rampa do Palácio do Governo Federal, receberam homenagens tão marcantes.

Nélida deixa ainda, em testamento, seus bens para o sustento de Suzy Pinon e Pilara Pinon sucessoras de Gravetinho. Em “Lágrima Furtiva” publicado em 2019, Nélida cita que Carlos Heitor Cony, o grande Cony, que em uma reunião da ABL confessou emocionado “jamais haver amado alguém tanto quanto a Mila, sua cachorra amiga, e que ninguém o amara como ela”.

Não tenho o Gravetinho, nem a Susy, nem a Pilara, ou a Mila e muito menos Resistência. As rampas que tenho que subir não são históricas, só cansativas, mas tenho uma digna representante destes seres maravilhosos, amigos, fieis e adoráveis. Chama-se Terra, “rottweiler não pura”, resgatada pelo meu enteado, ainda filhote, de uma caixa de papelão abandonada em uma estrada secundária de uma fazenda da região.

Quando a conheci já tinha decidido não mais me envolver com cães. Estes envolvimentos, quando por algum motivo ocorre a sepa­ração, trazem muito sofrimento. A morte é o motivo mais doloroso. E geralmente eles se vão primeiro. É melhor prevenir a dor e o sofri­mento. Já tive esta experiência com o Xeque, um fox paulistinha, meu fiel companheiro (sou filho único) dos meus dois aos dezoito anos de idade. Sua partida deixou muita tristeza, saudade e sua lembrança até os dias de hoje. Preferi então tratá-la com educação e com civilidade. Em casa sempre nos respeitamos. O tempo foi passando e por cerca de dois anos fomos bons amigos.

Mas aconteceu o inverso. Não foi ela que se foi. Eu quase fui! Aí então, no retorno à vida que quase perdi, senti seu companheirismo e o seu carinho. Quando voltei para minha casa, depois de longo período em tratamento no Hospital das Clínicas, ela ficou ao meu lado durante toda a recuperação. Foi uma longa convalescença, só evoluída com sucesso graças a atenção e carinho que recebi de minha esposa, dos filhos, dos enteados, dos amigos e os cuidados de equipe de saúde. Precisei refazer meus músculos e reaprender (já aprenderá há 75 anos) andar, sentar, levantar, subir e descer escadas. Terra, como uma guarda de honra ficou ao meu lado. Acompanhou-me sempre, especialmente quando consegui dar os primeiros passos.

Nossa relação então se modificou. Ela é minha companheira inse­parável do café da manhã até a ceia noturna. Faz muita festa quando retorno do trabalho. Isso é evidente pela velocidade do movimento rotacional de sua cauda. É a demonstração de sua alegria. Sou seu dedicado e cuidadoso garçom para o café da manhã, para o almoço e para o jantar. Além disso, sou seu companheiro nos períodos de pavor provocados pela chuva, pelos trovões e pelos estúpidos estampidos dos foguetes que ainda insistem em soltar.

Tenho com muita frequência aulas “online” à noite e a Terra fica debaixo de minha mesa de estudos. Somente se dispõe a dormir quan­do terminam as aulas. Penso até em reivindicar um diploma para ela ao fim dos cursos que participo.

Ainda não decidi, mas não tenho dúvida que preciso registrá-la como Terra Borges dos Santos.

Postagens relacionadas

Praia do Indaiá, quiosque 33

William Teodoro

Você sabe com quem está falando?

Redação 1

Um Brasil melhor para todos

Redação 1

Utilizamos cookies para melhorar a sua experiência no site. Ao continuar navegando, você concorda com a nossa Política de Privacidade. Aceitar Política de Privacidade

Social Media Auto Publish Powered By : XYZScripts.com