A escolha de Marília Marton, de 45 anos, como secretária de Cultura e Economia Criativa de São Paulo surpreendeu, ao mesmo tempo, o setor e os bolsonaristas, que queriam emplacar no cargo um nome afinado com as narrativas do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), padrinho político do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Em entrevista concedida ao Estadão, a primeira que ela concedeu após assumir o cargo, Marília afirmou que a pasta será blindada de pressões ideológicas, criticou o ex-secretário nacional de Cultura Mário Frias e disse que uma das metas do novo governo será “interiorizar” a cultura em São Paulo.
Formada em Ciências Sociais pela PUC-SP, Marília foi uma militante ativa do PSDB até 2016, chegando a presidir a Juventude da sigla na capital. Após receber o convite de Tarcísio, pediu sua desfiliação. Confira os principais trechos da entrevista:
Pretende blindar a Secretaria de Cultura de aparelhamento ideológico?
A cultura não tem nem deve ter ideologia. Ela é da esquerda, da direita, é de todo mundo. As pessoas querem dominar o que é indominável.
Como vai lidar com os bolsonaristas na sua gestão?
A cultura de São Paulo é muito estruturada, e esse processo de consolidação vem de muitos mandatos. É muito difícil romper isso A estrutura é muito forte. A Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo tem os melhores equipamentos da América Latina.
Mas no governo Bolsonaro houve um patrulhamento ideológico da área, que deixou de ser um ministério…
Não teve cultura no governo Bolsonaro. Não teve projetos. Houve um processo de parar as coisas para tentar mudar o rumo.
O que achou da gestão Mário Frias à frente da Secretaria Especial de Cultura?
Se ele quisesse jogar luz sobre algum tipo de ideologia, para isso precisaria de uma estratégia. Não houve estratégia nenhuma. Houve uma ruptura, uma gritaria e, em seguida, uma greve branca. As pessoas pararam de produzir. Não aconteceu nada. Existe uma cadeia produtiva da cultura. Não é simplesmente o artista no palco. Não adianta alguém do dia para a noite querer contar a história de outra forma.
A sra. tem simpatia por ideias de apoiadores de Bolsonaro para a área?
Não sou bolsonarista, mas acho que o Brasil precisava passar por um processo de direita. Chegamos a um ponto em que só havia uma narrativa. E nenhum piano toca com uma nota só. Todos os lados precisam parar e se olhar. Acabou mesmo a divisão do Brasil? Não acredito nisso.
Haverá relação da pasta com o Ministério da Cultura?
Total. Nosso partido é o da cultura.
O que achou da escolha de Margareth Menezes como ministra da Cultura?
Ela tem uma história que vai além de ser cantora. Margareth tem projetos sociais. Torço a favor. É preciso ter maturidade. Estamos blindados de pesos ideológicos. A cultura é o lugar da expressão livre.
Parte dos eleitores de Tarcísio é contra a Lei Rouanet. O que acha das leis de incentivo e como pretende tratá-las em São Paulo?
A cultura não se autofinancia. Ela precisa do braço do Estado. A produção de um filme demora dois ou três anos. Existe um processo de financiamento da cultura, e ele dá retorno para o Estado.
Vai manter a autonomia dos colegiados que hoje escolhem os projetos que serão beneficiados pelas leis de fomento do Estado?
Precisa haver autonomia. O Conselho de Avaliação dos Projetos não pode ser aparelhado por nenhum setor específico. Por isso é preciso que sempre se alternem os integrantes.
A secretaria fará um pente-fino para evitar projetos que possam escandalizar os mais conservadores?
O problema não é escandalizar. Todo projeto tem um lugar adequado para ele. Existem produções que acontecem em um ambiente um pouco mais controlado, e não para o público geral. A plateia tem que estar preparada para determinados tipos de discussão. O nu e o escatológico, por exemplo, têm um processo de linguagem importante para o mundo cultural, mas não pode acontecer numa praça pública. Mas o mundo artístico tem isso muito claro.
Projetos do governo com temática LGBTQIA serão mantidos?
Com certeza. A cultura é diversa.
Politicamente, a sra. se considera uma pessoa de esquerda ou de direita?
Moderada de direita e liberal.
A sra. defende pena de morte e aborto. Como é isso?
Parece contraditório. Na verdade, é preciso entender o que é o mundo ideal, a sociedade perfeita. Essa seria a sociedade da liberdade. Sou a favor da plena consciência.
Por que a sra. pediu a desfiliação do PSDB? Foi um pedido do governador?
A minha desfiliação devia ter sido feita lá atrás, na campanha que elegeu o João Doria prefeito em 2016. O processo de prévias foi muito traumatizante para mim. A partir dali me afastei do PSDB, mas não me desfiliei por comodidade. Nunca mais participei de nada do partido. Não teve nenhum pedido do governador. Avisei a ele que tinha vontade de me desfiliar, mas ele disse que não fazia a menor diferença.
Como explica a derrocada do PSDB em SP?
O partido envelheceu e não criou novas lideranças.
Seu nome não estava na lista de cotados para a pasta e surpreendeu muita gente. Como foi a escolha?
Foi uma junção de fatores. Havia uma preocupação da classe artística do Estado de que não fosse escolhido alguém muito ideológico e do time do Bolsonaro. Não queriam alguém de Brasília. Com isso, foi se criando uma onda na classe para escolher um nome. Foram levados vários fatores em conta até que chegaram a dois ou três nomes. No escritório de transição, optaram por alguém que tivesse contato com a classe e um perfil de gestor.
Qual a importância das Organizações Sociais na gestão da cultura no Estado?
Elas são as prestadoras de serviço da política da secretaria. Esse modelo foi criado porque há uma dificuldade muito grande em fazer contratações e mudanças rápidas. Vou dar um exemplo concreto. Se o Museu do Futebol fosse estatizado, a exposição em homenagem ao Pelé ia demorar cinco anos. Nas Organizações Sociais o processo é muito mais dinâmico. São 22 organizações operando.
Esse mecanismo das Organizações Sociais não é vulnerável à corrupção?
Esse é um sistema que está blindado hoje. Elas vêm desde 2008. Há um conselho que acompanha, além do Tribunal de Contas. As metas são muito bem definidas.
A gestão de Tarcísio de Freitas tem apenas cinco mulheres e duas pessoas negras no primeiro escalão. Faltou diversidade?
É preciso ver mais o mérito das pessoas.
A sra. se considera feminista?
Não. A métrica de ocupação de espaço na política é a cotovelada. As mulheres em 1948 precisaram ocupar espaço e isso foi crescendo. Mas chegamos aqui. A prateleira foi oferecida. O ideal era escolher mais por currículo do que por perfil.
Quais serão as prioridades para a cultura?
A gente precisa encerrar esses 28 anos e abrir um processo de escuta. Uma das prioridades do governo será a interiorização da cultura. Outra será desenhar a cadeia produtiva da cultura com o olhar da empregabilidade. Hoje a cultura chega muito esparsa no interior. Isso sempre foi um problema.