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O demérito do mérito

O mérito sempre nos causa alegria. O mérito de um autor, o mérito de um poeta. O mérito de um advogado ou médico, de um tradutor ou de um poliglota. O mérito de uma atriz. O mérito de uma dançarina, pintora ou pintor ou de qualquer outra pessoa, que por virtude ou talento acenda ao patamar superior da sociedade, gozando e consumindo os benefícios da produção, da criação da inteligência. É sempre motivo de aplauso ou de inveja ou de ciúme.

O mérito individual gera naturalmente o critério da meritocracia, para que o discurso político, agora misturado com o religioso, divul­gue o mérito individual e seu respectivo sucesso, como dependente só do indivíduo sem olhar o ambiente em que cresceu, as circunstâncias econômicas, que incidiram sobre a família daquele que soube “ven­cer”ou sobre a família daquele que não soube “vencer”.

O neoliberalismo celebra a individualidade do indivíduo, como se ele fosse o senhor do universo, independente das circunstâncias da vida que o cerca, quando nasce, quando cresce, quando adulto.

Para o neoliberalismo é mentira o que José Ortega e Gasset diz lapidarmente: “O homem é o homem e suas circunstâncias”.

A mensagem do neoliberalismo é a negação da solidariedade. Ele pulveriza o tecido societário e faz com que a concorrência ten­da a ser selvagem. Nisso a lição daquela etnia indígena da América latina é destoante, pois, jogos devem terminar empatados, para ela. Sem vencidos, sem vencedores.

Quando um autor negro é bem-sucedido, quando uma atriz negra é bem-sucedida, quando o futebol abre o caminho da mobi­lidade social a muitos, brancos ou negros ou pardos, pensa-se que o neoliberalismo está com a razão, registrando: estão vendo, quem tem valor vence.

Mas, na verdade, a vitória de um ou de muitos não pode fazer es­quecermos dos milhares, milhões, que não tiveram a bênção de terem o desabrochar de sua vocação, em ambiente saudável, de convivência saneada, ou um impulso aqui ou acolá.

Você pode comparar o mérito desabrochado numa escola de classe média ou alta, com a frequência de uma escola de um menino ou menina pobre? Quem ajuda a criança pobre a fazer suas lições em casa? Pode ter professor particular? Em que casa ela reside, é de um só quarto ou de dois, para quantas pessoas ou famílias, para um banheiro comum, que pode servir de banheiro para os bêbados do boteco da frente? E as crianças que ajudam na economia da casa.

Se a criança cresce numa família destroçada, porque um pai, bêba­do ou drogado, não consegue emprego, a mãe empregada doméstica cuida dos filhos dos outros, sem poder deixar o seu filho na creche, ou deixando-o com a vizinha, carentes de afeto dos pais, impossível ou quase impossível crescer nele a autoestima, que o identifica com o outro. A rua e a descontração do absoluto convidam-no facilmente à droga, ou à pequena infração, que abre a porta da prisão.

Nessa realidade não faltaram palavras, e nem faltam palavras, no discurso político, para apontarem a educação como grande proble­ma brasileiro, o que é verdade. Mas, além da necessidade de grandes unidades escolares que acolham diariamente as crianças, para estudar, tomar três refeições, praticar esportes e terem aquele ambiente de cul­tura, não se pode contar com um Ministério da Educação apodrecido pela corrupção, pelo preconceito ideológico ou religioso.

Mas, muito mais do que isso, não há educação sem investimento, não há educação quando o poder aquisitivo da população sofre redu­ção paulatina. Não há educação sem um projeto de desenvolvimento, sem que se organize a economia, aproveitando a rica e diversificada experiência brasileira, que valorize o capital e o trabalho, e faça do emprego a estabilidade da família, e com políticas redentoras abrindo novas frentes pelo investimento nas tecnologias e na ciência.

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