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Bicentenário da Independência jogado às traças

O sesquicentenário da Independência, em 1972, teve come­morações condignas da efeméride, apesar de estarmos, à época, na fase mais cruenta da ditadura militar. O centenário, em 1922, foi comemorado com uma exposição internacional de fôlego, com a participação de 14 países de três continentes, ao longo de seis meses. Agora, no bicentenário, quase não se ouve falar no assunto. Silêncio significativo. Também pudera. Na triste conjuntura política que atravessamos, os governantes colocam o respeito à história fora de qualquer projeto. Aliás, a extrema-di­reita no poder quer até reescrever a história nacional de acordo com os seus próprios parâmetros ideológicos e com suas mais terríveis aberrações. Não foi à toa que Bolsonaro vetou o projeto de lei, aprovado pelo Congresso, que regulamentava a profissão de historiador.

Há seis meses da data, o Bicentenário da Independência não tem um programa oficial. Mas circula por aí um vídeo ufanis­ta da Secretaria Especial da Cultura, intitulado “Memorial da Soberania”. Foi gravado por um drone nos céus de Brasília, mais exatamente na Esplanada dos Ministérios. O fundo é uma músi­ca épica, bem de acordo com os imensos cartazes que vestem os prédios do governo. O enredo é o desfile das datas marcantes da nossa história, iniciando com o “descobrimento” e chegando até ao “grito do Ipiranga”. Tudo acompanhado de uma logomarca: Dom Pedro I segurando a espada e a cruz da Ordem de Cristo, a marca do expansionismo português. Símbolos cristãos, heróis brancos, batalhas monumentais para derrotar os contrários.

Já é possível perceber que a peça institucional é o pontapé inicial da temporada de celebrações grandiosas. O Ministério do Turismo já investiu 30 milhões em um edital audiovisual. Existe também um site do governo sobre o bicentenário. Trata-se de uma versão histó­rica totalmente deturpada, mostrando, dentre outros escândalos, o “encontro pacífico” dos portugueses e indígenas, como mostrou a própria Folha de S. Paulo. O subsecretário de fomento, André Por­ciúncula, fez uma postagem sobre o edital no Twitter, dizendo que o objetivo do governo “é estimular o resgate do imaginário público dessa parte fundamental da história da nossa nação. O audiovisual no Brasil não ficará refém de palanque político-ideológico”.

Antes de sair da Secretaria Especial de Cultura para ser can­didato, Mario Frias pouco tratou do tema em suas redes sociais e, quando o fez, concentrou energia na disputa com o governador de São Paulo, João Doria, pela restauração do Museu do Ipiranga. Conclui-se que “o governo federal já perdeu o timing, a não ser que esteja escondendo alguma coisa. Fico consternado, pois é uma data importante”, como observa o deputado Enrico Misasi (PV-SP), presidente da Comissão da Câmara que, desde 2019, está dedicada ao bicentenário. “Realmente constrange o silêncio do governo federal. E constrange mais ainda por ter colocado essa celebração na mão de Mario Frias”, resumiu o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).

Por outro lado, só tem sentido comemorarmos o bicentenário da Independência se for para ir além do fato datado. Os rearranjos institucionais da nossa história pouco alteraram, ou alteraram com muita demora as relações sociais. O bicentenário seria uma ótima oportunidade de um balanço sobre o quanto não avançamos na construção de um Estado e em uma sociedade democráticas. É o que faz Jurandir Malerba, professor titular da UFRS. Ele lançou re­centemente o “Almanaque do Brasil nos tempos da Independência”, com ilustrações de Cordeiro de Sá, artista aqui de Ribeirão Preto. É uma obra que coloca no seu devido lugar o sentido de comemorar­mos esta data. Malerba nos brinda com a necessária discussão sobre as relações étnico-racionais e de gênero e o quanto elas importam no balanço de duzentos anos de independência política.

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