Por Mariane Morisawa, especial para o Estadão
Todo mundo viu o vídeo de uma mulher dançando aeróbica em Mianmar enquanto um golpe militar se desenrolava ao fundo. A cena, tão absurda que parecia fabricada, abre o documentário Diários de Mianmar, que tem sessão online a partir das 13h, no É Tudo Verdade Play, dentro do Festival É Tudo Verdade. “É uma imagem surreal, mas a realidade pode ser muito surreal”, disse a produtora holandesa Corinne van Egeraat. Ela falou ao Estadão, por videoconferência, no dia do 58º aniversário do golpe militar no Brasil, onde morou na década de 1970. O filme, que saiu com o prêmio de melhor documentário no último Festival de Berlim, é assinado pelo Coletivo Cinematográfico de Mianmar, um grupo de pessoas que permanecem anônimas por questões de segurança.
Essa abertura que quase parece ficção também abre espaço para o longa ser o que é: uma colagem de imagens captadas por repórteres-cidadãos nos protestos e na repressão violenta que se seguiram ao golpe, bem como a curtas que servem como encenações dos sentimentos dos habitantes de Mianmar. O país, que foi uma colônia britânica e depois sofreu uma ocupação japonesa, conquistou sua independência em 1948. Catorze anos depois, houve um golpe de Estado e a instauração de uma ditadura militar. Em 2011, Mianmar, antigamente chamada Birmânia, conquistou a democracia, que durou pouco.
Logo depois do golpe do ano passado, Van Egeraat e seu marido, o cineasta checo Petr Lom, foram contatados por conhecidos – os dois tinham passado um bom tempo no país, onde deram cursos e realizaram o filme Contos da Birmânia (2017), no período em que Mianmar estava se abrindo e havia esperança no ar. Em princípio, eles ainda não sabiam como seria esse apoio. “Mas, ao longo dos meses, a situação piorou. Filmar foi ficando mais difícil.” Assim, tiveram a ideia de fazer um único filme, híbrido, com imagens reais da violência e os curtas, que seria montado na Holanda.
VIOLÊNCIA
A ideia de misturar cenas reais e ficcionalizadas era mostrar da melhor maneira possível o que estava acontecendo ao povo. “Eles estão lidando com violência e medo”, disse Van Egeraat. No ano transcorrido desde o golpe, estimam-se pelo menos 1.700 mortos e mais de 10 mil presos. O filme deixa isso claro: pessoas são espancadas no meio da rua, ou levam tiros em protestos. “Mas os cineastas também queriam contar histórias humanas individuais, de relacionamentos amorosos, de relações entre pais e filhos”, contou Van Egeraat.
“Essas histórias, porém, são reais, aconteceram com eles, ou com pessoas próximas. Alguns cineastas interpretaram as histórias, outros usaram atores. Mas elas são pessoais e fazem com que o público sinta como é viver com medo. Você não pode pegar sua bicicleta e sair, ou namorar. Se estiver na rua, está em perigo ”
O filme também exibe diversas prisões de pessoas em casa, na presença dos filhos, por exemplo, sem mandados ou razões. “Quisemos mostrar como é viver em um ambiente inseguro. Porque na rua você se arrisca, mas em casa, também não está a salvo.”
Os cineastas envolvidos no filme estão em segurança, garantiu a produtora. “Falo com eles diariamente.” Apenas temem que suas histórias sejam esquecidas, quando surgem notícias de outros conflitos. “Mas eles estão felizes que o filme está sendo mostrado. E têm empatia com as pessoas do Afeganistão, da Ucrânia, ou mesmo do Brasil. Eles entendem o que essas outras pessoas estão passando.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.