Tribuna Ribeirão
Cultura

‘O Alienista’ evoca essência machadiana para falar de jogos de poder

Por Dirceu Alves Jr., especial para o Estadão

O diretor carioca Gustavo Paso considera ter assistido ao espetáculo O Alienista pela primeira vez, na quinta passada, dia 10, junto ao público que compareceu à Grande Sala da Cidade das Artes, no Rio de Janeiro. Sem uma prancheta nas mãos ou qualquer possibilidade de interferir no desempenho dos atores da Cia. Epigenia de Teatro, ele apreciou, como se fosse um espectador, a estreia da sua adaptação do conto de Machado de Assis, realizada junto do dramaturgo Celso Taddei. “Puxa, é pesado esse espetáculo”, disse Paso para si mesmo. “Mas, pensando bem, fiquei feliz, é curioso ver o público encontrar conexões com a realidade e travar o riso em algumas cenas que pareceriam engraçadas.”

A nova montagem da Cia. Epigenia, que segue em cartaz na capital fluminense até 10 de abril, de quintas a domingos, recorreu à essência machadiana para tratar de jogos de poder, da negação à ciência e de discutíveis protocolos de saúde. Em tom de fábula, a trama gira em torno do doutor Simão Bacamarte (interpretado por Rômulo Estrela), médico renomado, que se apresenta com um currículo invejável, mesmo que ninguém entenda direito as suas especialidades. Ele se instala em Itaguaí, pequena cidade com aspirações a metrópole, ao lado da mulher, dona Evarista (papel de Luciana Fávero), e inaugura um hospital onde planeja aplicar suas pesquisas em relação à loucura.

Pouco a pouco, os habitantes passam a ser internados de acordo com o julgamento de Bacamarte – mas seus critérios mudam conforme a conveniência e os interesses em jogo. “O protagonista criado por Machado ganha no final um salvo-conduto, está todo mundo são e o louco é ele, mas eu jamais compactuaria com essa solução”, afirma Paso. “O meu alienista pode ser Bolsonaro, Putin, Hitler e vários outros, tanto que o final é o oposto do livro.”

CLÁSSICO

Para cravar autoralidade, Paso desconstruiu o clássico sem abandonar a essência e se descolou de referências que dialogam com o período pré-republicano, quando foi publicada a obra, que, segundo ele, perderam força hoje em dia. “Esse trabalho só existe por causa do negacionismo a questões que até poucos anos eram óbvias”, explica. Para o diretor, só assim faz sentido contar histórias escritas, mesmo que por grandes autores, há décadas ou mais de um, dois ou três séculos. “O teatro não muda, o que muda é a plateia, por isso precisamos correr atrás de um ritmo ágil e esquecer de pausas desnecessárias”, sentencia. “O público não quer ver um texto montado da mesma forma que nos anos de 1950 ou 1960.”

A atriz e produtora Luciana Fávero, cofundadora da Cia. Epigenia há 22 anos, complementa as ideias de Paso, dizendo que o mundo vive em meio a uma grande farsa, o que colabora para o alcance da montagem. “Simão Bacamarte é um egoísta, só tem interesse no que pode trazer respaldos a ele, nada diferente de tanta gente que enxergamos por aí”, declara ela. “Evarista, minha personagem, é uma mulher alienada, sem consciência, que viaja aos Estados Unidos e se deslumbra com uma sociedade de consumo.”

Para contar essa história, a Epigenia produziu um espetáculo grandioso, com 14 atores peneirados em uma audição de 90 candidatos, um coro que percorre a ação, cenários em vários planos, além de figurinos elaborados e uma maquiagem que exige duas horas de caracterização. A encenação se inspira no expressionismo alemão, com o predomínio de tons de branco, preto e cinza, oferecendo uma estética sombria.

A proposta deve surpreender o público paulistano no segundo semestre, previsão da temporada por aqui. Em São Paulo, Paso e sua companhia estão associados às peças enxutas, concentradas na consistência da dramaturgia e dos atores. Exemplos são Oleanna (2015), Race (2017) e Hollywood (2018), a chamada Trilogia Mamet, baseada em textos do americano David Mamet, vistas em salas intimistas da capital paulista.

REFLEXÃO

Fator que amplia o interesse do público de O Alienista é a escalação de Rômulo Estrela como protagonista. O ator, conhecido pelas novelas Deus Salve o Rei, Bom Sucesso e Verdades Secretas 2, escapa do estereótipo de galã com uma bem cuidada caracterização. Nesta lente de aumento que o teatro joga sobre o real, Estrela festeja a oportunidade de despertar gatilhos no espectador que possam gerar reflexão. “O meu Simão Bacamarte se transforma em um Frankenstein por causa do poder e acaba isolado”, diz o artista. “Eu relutei em construir esse vilão, mas o trabalho de caracterização me descolou do personagem e me ajudou a ver que sou um só porta-voz dessa provocação oportuna e necessária.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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