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Joalheria Ferreira & Cia.

O centro da cidade de Ribeirão Preto, no final da Segun­da Grande Guerra, não se submetia a uma regra geodésica e nem geométrica. O sul era apontado pelo Café da Única e para o norte o Theatro Pedro II em cuja calçada o Valdemar engraxava os sapatos alheios e passeava o Quinzinho. Para o oeste as duas Livrarias Valadas, ao lado da Paulicéia nova e a Paulicéia velha. E apontando para o leste estava o Pinguim. A descrição, com certeza, atemorizava a leitura da bússola, mas, com certeza, não surpreendia os marcos respeitados da me­mória daqueles que conseguiram avançar além daqueles dias.

Atravessando a Álvares Cabral, no térreo do prédio estava a livraria do Delcides Machado, especializado em obras clássicas encadernadas, como, por exemplo, o “Tesouro da Juventude”, com o qual inaugurei o meu gosto pela leitura.

Defronte estava a “Caprichosa” e ao lado dela a Joalheria Ferreira, onde figurava naquela época o “seu” Ferreira. Nos tempos atuais, ali permaneceu o seu filho Marcos Ferreira que devotou muito do seu tempo pregando a necessidade de ser respeitado o centro da cidade.
A loja fechou suas portas que quando ainda abertas olhava-se para a existência de muita gente da histórica cidade de Ribeirão Preto.

Por volta de 1945, um grupo de amigos convivia naquele local, com a anuência do “seu” Ferreira e a presença do livrei­ro Machado: Névio Cantarelli, Zé Bigode e Dante Fonseca, meu pai, entre outros.

Não cometo erro com a data, pois meu pai, naqueles dias,com­prou um relógio de pulso com a face preta. Tratava-se de um Ome­ga-Tissot, apelidado por “militar”. Na guerra os soldados deviam usar relógios com a face preta para não levar bala dos inimigos.

Recebi o relógio como herança do meu pai, comprado do “seu” Ferreira há 80 anos. Permanece funcionando no meu pulso, como documento de uma antiga afeição.

Morávamos na Praça Tiradentes. Aos domingos os amigos da joalheria passavam a tarde em nossa casa, onde era possível ouvir pelo rádio a narrativa dos jogos do São Paulo F. C. A crian­çada corria pela casa ou pela calçada da Praça Tiradentes.

Durante a partida de futebol, as esposas, como dona Altiva, dona Dudu, dona Cedina e minha mãe Maria Amélia preparavam o “ajantarado” de domingo que tinha como prato principal o inesquecível “manjar branco”.

Nem sempre o São Paulo saía vencedor. Nem sempre o mesmo grupo assim se completava. Ou era alterado pelo resultado do jogo ou pela chegada de outros velhos amigos. O certo era que ou se reuniam na Joalheria do “seu” Ferreira, durante a semana, ou na nossa casa aos domingos. Quase todos sempre, mas nem sempre, lançaram suas imagens que passeiam pela nossa lembrança eternizada.

Há uma passagem do argentino Jorge Luís Borges que documenta o fato. Ele, que era cego e espantosamente diretor da Biblioteca de Buenos Aires, registrou que ao passar por determinada esquina de sua cidade, sentia bater no peito a dor da perda de um grande amor.

Imediatamente, o poeta eternizou o fato: nunca se perde um grande amor. Somente se perde aquilo que nunca se teve. Se houve um grande amor, a ficção do tempo não será sufi­ciente para destruí-lo.

Se tivemos a oportunidade de conviver com o “seu” Ferreira, com o Delcides Machado, com o Zé Bigode, com o Valdemar, com o Quinzinho, o Cantarelli, com o meu pai, jamais os fatos serão destruídos pelo tempo porque só se perde aquilo que nunca se teve.

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