Tribuna Ribeirão
Cultura

Documentário expõe o vazio deixado em Brumadinho

FOTOS: DIVULGAÇÃO/FERNANDO MOREIRA

Uma das maiores tragé­dias socioambientais do Brasil completou três anos na última terça-feira, dia 25 de janeiro: o rompimento da barragem da mineradora Vale em Bru­madinho, Minas Gerais, em 2019. Além de causar inú­meros danos ambientais na região, a tragédia resultou em 272 mortes. Para o diretor de cinema Fernando Moreira, esses números representam vidas e não podem ser resu­midos a registros. Por isso, ele decidiu produzir uma obra­-homenagem às vítimas do desastre, o curta-metragem “O Vazio Que Atravessa” – lançado em junho de 2021 -, que recebeu prêmios como o de Melhor Roteiro no Festival Internacional de Cinema da Índia (2021) e foi selecionado para mais de 30 festivais, entre eles a Mostra de Cinema de Tiradentes.

“No filme, um dos entre­vistados, Evanir, diz: ‘Como é que eu vou falar para eles? O que eu vou fazer?’. Olhando essa cena eu senti um vazio. Um vazio que jamais será preenchido”, comenta Fer­nando Moreira, que é tam­bém jornalista e doutorando em Semiótica e Linguística Geral na Faculdade de Filo­sofia, Letras e Ciências Hu­manas (FFLCH) da USP.

Ele conta que Evanir não sabia como dizer aos dois filhos que a mãe, funcionária da mineradora Vale, estava desaparecida após a tragédia. No início do filme o pai escuta a lista de nomes de sobreviventes sendo lida pelo tenente Pedro Aihara, do Corpo de Bombeiros de Mi­nas Gerais. Após descobrir que a esposa não estava entre os 182 nomes, ele envia uma mensagem de voz aos filhos: “Savinho, Samuel, o nome da mamãe ainda não aparece en­tre os que estão em seguran­ça, não, tá? Vamos orando, em nome de Jesus”.

Evanir, que perdeu a mulher na tragédia, é um dos entrevistados no filme

Em 2021, Evanir, Savinho e Samuel finalmente receberam a notícia da localização do cor­po. “A história do Evanir, que perdeu a esposa, é muito for­te para mim. Ele parecia estar anestesiado com tudo aquilo, o olhar dele era muito distante. Esperar todo esse tempo com dois filhos é uma angústia. Ele se apegava muito à fé para tentar se consolar e fugir um pouco dessa realidade triste”, lamenta Moreira.

Não era a primeira vez que Moreira estava diante de um desastre ambiental envolven­do a Vale. Em 2015, na época como repórter, ele atuou na cobertura do rompimento da barragem em Mariana (MG), operada pela Samarco, con­trolada pela mineradora Vale, com a britânica BHP Billiton.

“Era um cenário devasta­dor. Conversei com pessoas que estavam sofrendo muito. Quando soube da tragédia de Brumadinho, fiquei perplexo pelo fato de a mesma situa­ção se repetir, mesmo com as promessas de comprometi­mento por parte da Vale.”

Em fevereiro de 2019, Moreira voltou para sua ter­ra natal, Belo Horizonte. Com orçamento próprio e trabalhando de forma inde­pendente, em cerca de uma semana fez visitas a Bruma­dinho para entrevistar algu­mas vítimas do desastre. Ele decidiu produzir o seu pri­meiro filme, com uma pro­posta voltada para o enfoque humano, diferente do que estava acostumado a fazer com as reportagens (focadas na informação e com tempo mais limitado).

“Na agenda midiática há a retomada de acontecimen­tos importantes. Por exemplo, no dia 25 de janeiro esse cri­me socioambiental completa [completou] três anos. Perto desse dia muitos veículos vão publicar reportagens sobre o assunto, mas no resto do ano, provavelmente, esse tema não vai aparecer. Já o documentá­rio é perene, atemporal e pre­enche essa lacuna”, compara o diretor.

O documentário tenta traduzir a dor das vítimas com base na memória de dias angustiantes. Um dos entre­vistados, Júlio, contou como conseguiu fugir da lama com uma caminhonete de uma forma surpreendente. Porém, sua nora e uma equipe de futebol inteira não tiveram a mesma sorte e foram atingi­dos. Júlio era o técnico desse time, o único amador do dis­trito de Córrego do Feijão, em Brumadinho. A tragédia mudou sua vida. Até o campo de futebol onde trabalhava se transformou em heliponto. Um lugar que antes era de diversão passou a representar aflição.

Outro entrevistado, o tenente Aihara, lidou com a morte no dia a dia trabalhan­do nos escombros. Numa das cenas do documentário, ele comenta: “Quando a gente acaba vendo esse tipo de coi­sa e pensa que isso poderia ter sido evitado… Então, a gente pensar até onde vai a ambição do ser humano, para mim, é uma reflexão que fica”.

Bombeiro na linha de frente da tragédia de Brumadinho

Segundo Fernando Mo­reira, a Vale alega que presta atendimento às famílias, ape­sar de ainda não ter indeni­zado todas elas. Além disso, o processo na Justiça acaba sen­do mais uma tragédia na vida das pessoas. “Às vezes elas têm vontade de desistir ou acabam assinando qualquer acordo coletivo, que não as beneficia. Porque essa situação é sofri­da”, analisa o diretor.

Minas Gerais tem 39 bar­ragens em nível de perigo. Conforme a Agência Nacio­nal de Mineração (ANM), 14 barragens desse tipo no Esta­do não tinham sequer projeto técnico concluído até o início de janeiro — 11 são da Vale. Nesse contexto, Fernando Moreira reforça que as empre­sas de mineração deveriam priorizar vidas e o tratamento sustentável socioambiental.

“Deveriam refazer os pla­nos, reforçar a segurança e reduzir a margem de lucro pensando no bem-estar das pessoas.” O diretor comenta que, na sentença de primei­ra instância, que contemplou 131 funcionários, publica­da em junho de 2021, a Vale alegou que seria “absurdo” o valor de R$ 1 milhão por morte. Fernando repudia a falta de humanidade e ética das empresas e afirma que esse documentário é uma forma de resistência. “Esse trabalho de formiguinha que resultou no documentário tem o poder de ser uma resistência a um poder hegemônico. É uma tentativa de contrabalançar esse poder.”

As consequências do de­sastre são demonstradas no filme de forma detalhada. A frieza e a perda de vitalida­de é representada com uma paleta de cores fria, com tons de azul para reforçar o dis­tanciamento. Já a sonorização foi pensada para valorizar o silêncio, conforme o diretor. “Há pouquíssimos trechos de trilhas, são momentos mui­to importantes, reforçando a ideia de ausência.” A cena em que Evanir abraça o filho em silêncio, durante um tempo, tem imensa força, exemplifi­ca. “Há um grito em silêncio, mostrando que existe uma ausência ali. Nesse momento, muitas pessoas ficam emo­cionadas, se colocam nessa situação e pensam: ‘Como é que a vida é retomada?’”.

Após o período de festi­vais, Fernando planeja dei­xar o filme acessível a todos e até oferecer o documentário para ser utilizado em salas de aula. “A persistência em veicular esse filme ‘grita’ em silêncio inquietante. Todas as centenas de vozes silenciadas ecoarão”, espera o diretor.

Informações sobre a 25ª Mostra de Cinema de Tira­dentes que estava programa­da para terminar no sábado, 29 de janeiro podem ser aces­sadas pelo site https://mostra­tiradentes.com.br. (Texto Julia­na Alves/Jornal USP).

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