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Elza Soares não morreu

O dia 20 de janeiro deveria ser apenas de celebrações, além da data do meu aniversário e também o da minha mãe, é o Dia de São Sebastião, que na tradição Católica Romana é protetor contra a fome, a peste e a guerra. Padroeiro de várias cidades, pelo mundo, inclusive Rio de Janeiro e Ribeirão Pre­to, no sincretismo com as religiões de matriz africana é co­nhecido como Oxóssi, o orixá da caça, florestas, dos animais, da fartura, do sustento. Amante das artes e das coisas belas. É o caçador de axé, que busca as coisas boas, as boas influências e as energias positivas. Agora a data ganha um novo registro histórico, o dia da morte de Elza Soares.

Forte, resistente e resiliente, Elza não será canonizada, mas é incontestavelmente uma grande guerreira que será reverenciada por muito tempo. Cantora e compositora, é uma artista completa, considerada uma das maiores vozes que a música brasileira conheceu e não apenas pelas incompará­veis apresentações, mas também, pelo engajamento político e social. Sua vida pessoal repleta de lutas e desafios deixaria sem palavras, o mais criativo roteirista de Hollywood e virou enredo da sua escola do coração, a Mocidade Independente de Padre Miguel, que no carnaval de 2020 apresentou: “Elza Deusa Soares”.

Para se ter uma ideia, aos doze anos, sofreu uma tenta­tiva de abuso e foi obrigada a se casar com o agressor pois, segundo seu pai “a honra de sua filha só estaria limpa com o casamento”. O matrimônio forçado foi marcado pela violência doméstica e sexual e ficou viúva aos 21 anos.

Posteriormen­te foi extremamente criticada por seu relacionamento com Mané Garrincha e durante anos sofreu calada com a violência do ídolo do futebol que se tornou um alcoólatra violento que a agrediu por diversas vezes. Elza teve sete filhos e perdeu quatro, sendo um por fome e um por acidente. Ainda foi perseguida, pela ditadura militar, tendo a casa metralhada como forma de intimidação para deixar o país. Enfrentou o racismo, as oscilações na carreira e inúmeros desafios.

Ingressou na música para sobreviver à fome e uma passagem marcante foi sua participação no rádio em um programa de calouros apresentado pelo grandioso Ary Barroso, que ao ver como estava vestida perguntou zombando de qual planeta ela havia vindo. Sua resposta foi atravessada: “Do planeta fome!”. Após ouvir a garota cantar o apresentador vaticinou “Senhoras e senhores, nesse exato momento acaba de nascer uma estrela”.

Dona de uma carreira longeva, que funde samba, rap, rock, música eletrônica e hip-hop carioca, soube se adaptar às mudanças e utilizar os recursos tecnológicos do momento, sendo admirada por várias gerações. Em 2015, gravou a mú­sica Maria da Vila Matilde, onde alerta: “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim” que se tornou um dos hinos do movimento feminista. Colecionou diversos prêmios nacionais e internacionais e no ano 2000, recebeu o título de A Melhor Cantora do Universo, pela emissora BBC, de Londres.

A verdade e contundência de suas apresentações e manifes­tações a elevaram ao maior patamar da cultura nacional. Elza Soares tornou-se a voz da mulher, da negra, do favelado, da comunidade LGBTQIA+, da minoria, enfim, do povo oprimido.

Curiosamente partiu na mesma data que Garrincha, morto há 39 anos e realizou o desejo estampado na música A Mulher do Fim do Mundo: “Eu vou cantar até o fim”. Para os que estão chorando, um lembrete: Elza Soares não mor­reu, apenas saiu de cena do palco planeta terra, para cantar e encantar em outros palcos do universo.

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