Por Leon Ferrari
Médicos americanos realizaram, pela primeira vez, o transplante de um coração de porco geneticamente modificado para um ser humano. O paciente tem 57 anos e passa bem. O procedimento inédito foi realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland. O porco modificado foi doado pela empresa de medicina regenerativa Revicor.
Por ora, o transplante demonstrou que um coração de animal geneticamente modificado pode funcionar no lugar de um humano sem rejeição imediata pelo corpo. O paciente segue sendo monitorado para que se possa definir se o procedimento, de fato, traz benefícios que salvam vidas, conforme informou a equipe médica.
“Essa foi uma cirurgia inovadora e nos deixa um passo mais perto de resolver a crise de escassez de órgãos. Simplesmente não há corações humanos de doadores suficientes disponíveis para atender a longa lista de potenciais receptores”, disse Bartley Griffith, que transplantou cirurgicamente o coração de porco no paciente. “Estamos procedendo com cautela, mas também estamos otimistas de que esta cirurgia inédita no mundo fornecerá uma nova opção importante para os pacientes no futuro”.
O paciente, David Bennett, havia sido considerado inelegível para um transplante de coração convencional ou para receber bomba cardíaca artificial. “Era morrer ou fazer esse transplante Eu quero viver. Eu sei que é um tiro no escuro, mas é minha última escolha”, disse Bennett um dia antes da cirurgia. Acamado nos últimos meses, disse estar “ansioso para sair da cama” quando se recuperar.
A Food and Drug Administration (FDA), órgão americano equivalente à Anvisa, concedeu autorização de emergência para a cirurgia na véspera de Ano Novo. O sinal verde para o produto médico experimental foi dado por se tratar da única opção disponível para o paciente.
Antes de consentir em receber o transplante, Bennett foi totalmente informado sobre os riscos do procedimento. O xenotransplante (transplante entre espécies diferentes) traz um conjunto de riscos, incluindo a possibilidade de desencadear uma resposta imune perigosa – que pode ser mortal ao receptor.
Para evitar a resposta imune é usada a edição genética que, neste caso, nocauteia genes do porco responsáveis pela rejeição no humano. Além disso, adiciona genes humanos responsáveis pela aceitação imunológica.
A universidade informou que os médicos cientistas também usaram uma nova droga junto com as demais antirrejeição convencionais. O novo medicamento utilizado é um composto experimental fabricado pela Kiniksa Pharmaceuticals.
No Brasil, até junho de 2021, 26.230 brasileiros estavam na fila de espera por um rim, segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). O número representa mais da metade (57%) das pessoas que esperam por transplante no País.
Na busca de “órgãos adicionais”, que não têm origem em cadáveres ou voluntários, o de suínos, sobretudo, mostra-se mais adequado. “Eles têm fisiologia digestiva e circulatória muito parecida com a nossa, têm um tempo de gestação mais curto e são prolíferos”, disse Silvano Raia, pioneiro do transplante de fígado na América Latina, ao Estadão em outubro do ano passado.
Rim
Em outubro de 2021, um ser humano recebeu um rim de porco modificado sem desencadear rejeição imediata do sistema imunológico do receptor. O procedimento foi feito no Langone Health, da Universidade de Nova York (EUA).
A receptora foi uma paciente com morte cerebral com sinais de disfunção renal. A família consentiu com o experimento antes que ela fosse retirada do aparelho de suporte de vida, conforme os pesquisadores. Por três dias, o novo rim foi anexado aos vasos sanguíneos e mantido fora do corpo dela, dando aos profissionais da saúde acesso a ele.
Pesquisa no Brasil
O feito americano de outubro estimulou uma pesquisa associada à Universidade de São Paulo (USP), com linha semelhante e comandada por Silvano Raia. O cirurgião estima fazer os primeiros testes com seres humanos no País já no próximo ano, caso o estudo consiga investimento para construir um criadouro biosseguro (“pig facility”).
O estudo brasileiro, tocado no Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células Tronco da USP, onde se criou um laboratório de xenotransplante, foi concebido por Raia há quatro anos. A parte de engenharia genética, segundo os cientistas, que consiste na inativação de genes do porco e na adição de genes humanos, está pronta.