Tive o privilégio de viver parte da minha vida na companhia de Sócrates. Imagine, ter sempre por perto um médico? E olha que não era um médico qualquer, não, era um senhor médico. Cansei de vê-lo consultar amigos nas mesas dos bares, sem equipamentos, era aquele negócio tipo médicos de antigamente, daqueles que só no olhômetro acertavam na mosca o diagnóstico. Fazia consulta até por telefone e matava a pau o problema do amigo.
Certa noite, presenciei mais uma das suas. Geraldinho, um boêmio de carteirinha, daqueles que bebiam pra dedéu, sentou à nossa mesa no Bar do Val, mas não estava bebendo nada. Magrão estranhou e enquadrou o boêmio: “Que houve, Geraldinho? Você não vai encharcar o verbo hoje?”. “Não, Magrão”, disse ele e continuou. “Estou tomando antibiótico e você sabe que não pode, álcool tira o efeito”.
Magrão, rindo, falou: “Quem te disse que não pode beber, Geraldinho? Vá por mim, você pode beber à vontade, mas quando parar, basta tomar dois comprimidos de antibióticos que fica tudo zero a zero”. Fazia dois dias que Geraldinho estava na secura, e, feliz da vida, falou: “Vou na tua, Magrão”. E logo chamou pelo Mexerica, um garçom chegado nosso. “Mexa, traga logo meu copo que vou entrar em campo”. Dias depois, nosso boêmio pintou no pedaço e parabenizou o Doutor por mais essa receita. “Na mosca, Magrão”.
Teve época em que Sócrates, uma vez por semana, ia pra Sampa. Dizia: “Ainda não posso te contar o que vou fazer lá, mas estamos nos finalmentes, depois te conto”. Tempos depois, Sócrates, muito alegre, contou-me que todas suas idas pra Sampa era porque estava participando do filme “Boleiros II”, junto com Lima Duarte, Otávio Augusto, Adriano Stuard e outros artistas brasileiros. O lançamento, em Ribeirão Preto, seria na semana seguinte com coquetel no RibeirãoShopping. E lá fomos nós.
Lima Duarte não desgrudava do Sócrates e dizia: “Não sei quando vou poder estar perto de você outra vez, deixe-me aproveitar esse momento”. E emendava um assunto atrás do outro. Um jovem repórter insistia em perguntar a Lima Duarte porque ele negava ser da Vila Tibério. Ele respondia que isso era conversa e completava: “Menino, como disse Noel Rosa no seu samba ‘Feitiço da Vila’, acredite, eu sou da Vila”.
Noel Rosa exaltando sua Vila Isabel, disse isso, “Eu sou da Vila”. “Olha, menino, vou te contar uma história pra te provar que eu sou da Vila Tibério”. E emendou: “Quando menino, morava na rua Rodrigues Alves e quando adolescente trabalhei no armazém das Lojas Diederichsen”. E continuou: “Rolava na época a Segunda Guerra Mundial, meus avós portugueses moravam com a gente, eram analfabetos, o velho tinha um gênio muito ruim. Sentado em sua cadeira na varanda, chapéu na cabeça, suas mãos descansavam sobre sua bengala entre suas pernas, bigodão enorme e amarelado pela fumaça do cigarro de palha. Quase não falava, mas era bravo como ele só”, disse.
“O jornal vinha a cada 15 dias, e ele me escalava pra lê-lo. Ele ouvindo minhas leituras sobre a guerra, elegeu como seu herói um general americano, General Montgomery, e sorria quando ouvia minha voz dizendo que seu herói tinha vencido mais uma batalha. Um belo dia, seu ídolo perdeu uma batalha e quando li a notícia, ele me bateu com sua bengala, dizendo que seu general nunca perdia uma batalha”.
Lima continuou: “Pra não apanhar mais, mudei a tática, mesmo que Montgomery perdesse, lia que havia vencido. Um belo dia, meu pai, passando por detrás, olhou o jornal, viu que li errado, tirou a cinta e deu-me uma surra dizendo: ‘Mentindo pro seu avô, moleque?!’ Fiquei perdido, mas dei meu jeito, só lia pro meu avô, longe do meu pai”.
Sócrates riu e comentou: “Que sinuca, Lima, se falava a verdade apanhava, se contasse mentira também” (heheheh).
Sexta conto mais, abreijos amigos.