Por Ubiratan Brasil
Aos 53 anos, o americano Chris Ware é considerado o melhor quadrinista em atividade no mundo por grande parte dos colegas. Autor de várias ilustrações que foram capa da revista New Yorker, Ware tem um traço meticuloso, detalhista e, graças à sua paixão pela publicidade e pelo design gráfico americano do início do século 20, seus livros se transformam em uma sucessão de descobertas visuais e históricas.
É o caso de Rusty Brown, lançado agora pela Companhia das Letras exatamente como no original. Trata-se de um romance gráfico que revela quatro histórias interligadas, começando em uma escola do Nebraska, nos anos 1970, quando o jovem Rusty revela sua solidão Em seguida, em um salto para o passado, o pai do garoto, o infeliz Woody Brown, ocupa o centro da trama. A terceira história mostra a trajetória de um valentão, Jordan Lint, que barbariza a vida de Rusty. E o volume se completa com a história de Joanne Cole, professora negra em uma escola predominantemente branca.
A constante volta ao passado e uma indisfarçável melancolia fazem com que Ware seja comparado ao escritor francês Gustave Flaubert, especialmente pela forma pungente com que o desenhista usa a memória na construção da identidade. Com isso, é comum surgirem páginas totalmente ausentes de palavras, como já foi visto em Jimmy Corrigan, lançado aqui em 2010. Para entrevistar Ware por e-mail, o Estadão convidou cinco quadrinistas brasileiros para formularem perguntas: Fido Nesti, Rafael Coutinho, Amanda Miranda, Rafael Sica e Aline Zouvi. O resultado está a seguir.
Fido Nesti: Você já teve um sonho e percebeu que sua forma foi influenciada pela maneira como está acostumado a construir sua narrativa ou a criar as estruturas de seus painéis em suas histórias? Quando você está escrevendo sobre cheiros – Natal, wafer de baunilha, perfumes, o café derramado na sala dos professores da escola -, isso aciona alguma parte do seu cérebro, afetando de alguma forma a maneira como você está desenhando no momento?
Definitivamente, tive sonhos em que leio HQs que são, de alguma forma, mais estranhas, complicadas e interessantes do que qualquer coisa que eu poderia imaginar na minha vida acordado – e então, é claro, acordo e percebo que posso também imaginá-los acordado. É um sonho recorrente, que envolve música ou pintura, e sempre tentei levar um pouco dessa experimentação solta para o meu próprio trabalho, o que geralmente envolve “sossegar o facho” (frase que minha esposa me diz o tempo todo, aconselhando-me a não ser tão tenso) e simplesmente vendo o que acontece. Nos últimos anos, tentei apresentar imagens e momentos que são intencionalmente incertos e narrativamente não estruturados. Claro, sou apenas um entre dezenas de cartunistas que tentam trabalhar dessa maneira, sendo o mais óbvio Gary Panter, especialmente em seus primeiros trabalhos, e Seiichi Hayashi em sua narrativa, e até mesmo alguns cartunistas do século 19, como John Parry e seus experimentos visuais. Que eu me lembre, não tive um sonho que tenha sido influenciado pela estrutura de uma das minhas páginas, mas, tenho certeza de que tive sonhos de ansiedade sobre não terminar uma página a tempo. E, quanto a escrever sobre cheiros, sim, isso sempre dispara algo estranho em meu cérebro, embora geralmente apenas por um ou dois segundos, mas é quase tão perfumado como um cheiro real. Tenho medo de que, quando chegarmos ao ponto em que pudermos gravar e reproduzir cheiros, eles percam toda a sua poesia, como aconteceu com o som no final do século 19 com o advento do fonógrafo.
Rafael Coutinho: você foi responsável pela construção de um novo estilo de narrativa nas histórias em quadrinhos, inovando tanto no formato quanto na profundidade emocional dos personagens e dos enredos. Ao lado de obras como Here, de Richard McGuire (que, como você, vinha produzindo material experimental desde os anos 1970/80) e My Favorite Thing is Monsters, de Emil Ferris, entre outros, seu trabalho abriu um novo espaço de possibilidades para novos quadrinhos em todo o mundo. Como você vê esse momento de mudança no mundo dos quadrinhos? É possível que os quadrinhos tenham entrado em sua fase conceitual /experimental rememorando a história da arte? O público tem acompanhado esse movimento?
Acredito que Richard é um dos maiores artistas dos últimos 50 anos, e Here é uma das melhores histórias em quadrinhos já escrita/desenhada. Ele mudou meu pensamento não apenas sobre os quadrinhos, mas sobre o próprio mundo, e continua a fazê-lo. Concordo que os quadrinhos estão em uma nova fase, simplesmente porque há cartunistas mais pensativos, inteligentes e experimentais trabalhando mais agora do que nunca, e todos estão, em grande medida, tentando se aproximar de uma sensação de realidade e vida humana real mais do que as gerações que os precederam. Todos estamos lendo o trabalho uns dos outros e vendo como essa ou aquela pessoa “ficou mais perto” de uma sensação do que talvez tivemos. Observando (ou simplesmente roubando) essas lições e expandindo a linguagem para um alcance emocional cada vez mais amplo. Quando eu estava com 20 e poucos anos, não tinha certeza se os quadrinhos eram capazes de produzir qualquer coisa além de diversão e risos, embora tenha ficado surpreso ao descobrir com relativa rapidez que eles podiam comunicar tudo, desde tristeza a riso.
Amanda Miranda: Entre os temas de Rusty Brown, talvez os que mais se destaquem sejam o arrependimento e a passagem implacável do tempo. Todos os personagens se unem em um sentimento de remorso, mas os detalhes de cada um compõem um microcosmo angustiante onde os traumas servem de base para a construção de adultos que se sentem à mercê da própria vida, pisoteados pelo cotidiano. Representar um sentimento tão difícil é uma forma de organizar e compreender o caos e a imprecisão da vida real?
Bem, isso é totalmente verdadeiro. Não há um momento da minha vida sem que eu pense em velhice e solidão no futuro, ou lamente a perda de alguém morto há décadas. É simplesmente a maneira como o cérebro humano (ou talvez apenas o meu) entende a realidade – embora, admito, talvez eu seja um pouco mais propenso a morosidade do que a pessoa média. Uma das razões pelas quais me tornei cartunista é porque me permitiu apresentar imagens em uma página de diferentes tempos e espaços simultaneamente; memórias de anos ou mesmo séculos de distância podem coexistir no mesmo espaço, da mesma forma que em nossas mentes. É certo que a aguda consciência da passagem do tempo pode ser opressora e deprimente por sua implacabilidade; um dos meus filmes americanos favoritos é Sinédoque, Nova York, de Charlie Kaufman, que captura perfeitamente essa sensação. Outro é Era Uma Vez em Tóquio, de Yasujirô Ozu, que trata o tempo de uma maneira completamente diferente, talvez mais simples, filtrando a sensação de viver.
Rafael Sica: a resposta definitiva, a saída fácil, a preguiça mental, a aversão ao desconhecido, o desconforto diante do inesperado e do erro. Que diálogo seu trabalho tenta estabelecer com esse tipo de leitor? A arte está perdendo cada vez mais espaço para a certeza?
Definitivamente, não sou fã de ficção popular, de programas de TV sobre criminosos ou de filmes de super-heróis, embora fosse quando tinha 12 anos. Acho bastante angustiante que esse tipo de coisa pareça ter ganhado popularidade com um leitor/telespectador adulto, ao mesmo tempo que assume o efeito superficial de parecer mais “sofisticado” ao adotar uma quase vulnerabilidade ou pseudocomplexidade e que, no final, acaba produzindo uma versão falsificada da experiência humana. Embora eu seja mesquinho e, segundo minha mulher, alguém duro de aturar, tento ser honesto comigo mesmo. Mas o que sei? O que importa é se cercar da arte que você ama e te diverte e da qual você simpatiza, sem enganar ninguém. A vida é muito curta e deve-se aproveitá-la como quiser – não quero dar palpites.
Aline Zouvi: o que podemos esperar após o “intervalo” no último painel? E, além de você, com qual personagem de Rusty Brown mais se identifica?
Tentei me identificar com todos os personagens o máximo que pude, embora, no momento, acredito que me identifique mais com Joanne Cole, talvez porque só recentemente terminei sua história O livro é pretensiosamente estruturado como um floco de neve partido ao meio, com os três personagens da primeira metade refletindo sobre uma metade do floco de neve. Rusty Brown é o pedaço de neve mais desprezível, em torno do qual todos os flocos de neve se formam. A segunda metade do livro cobrirá Alice White, Mr. Ware e Chalky White, bem como costurará outros aspectos da história. Espero viver para vê-lo concluído, junto com os outros quatro livros em que estou trabalhando. Trabalhar nisso por vários anos faz parte do “plano”, da mesma forma que mantemos as memórias de nossa infância perto dos nossos corações e relembrá-las, às vezes diariamente, é uma forma de reafirmar nossas identidades – e as histórias vão mudando e mudando ao longo dos anos, à medida que as recontamos.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.