O prêmio Nobel de Literatura deste ano colocou em destaque os refugiados, exilados ou deslocados, que emergem da obra do escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah, um professor aposentado de Inglês e de Literatura Pós-colonial na Universidade de Kent, na Inglaterra.
Gurnah é o sexto escritor africano a ganhar o Nobel de Literatura, se consideramos que o primeiro foi conferido, em 1957, ao escritor franco-argelino Albert Camus. De lá para cá, houve mais quatro vencedores: o nigeriano Wole Soyinka, em 1986, o egípcio Naguib Mahfouz, em 1988, e dois sul-africanos, Nadine Gordimer, em 1991, e J. M. Coetzee, em 2003. No Nobel de Literatura, a Academia Sueca ainda caminha lentamente em termos de diversidade cultural, mas parece traçar um caminho sem volta.
A notícia da premiação de Gurnah traz à tona algumas questões interessantes. O escritor é apresentado, por exemplo, como professor universitário, de modo que a sua vida acadêmica e a sua atividade artística caminharam lado a lado. A propósito, o tema de seus romances e contos, que tratam dos “efeitos do colonialismo” de forma “intransigente e compassiva”, como destacou a Academia Sueca, parece incorporar elementos da teoria pós-colonial discutidos pelo professor na sua cátedra. Vale lembrar que, na área literária, esse campo de pesquisa se consolidou como uma extensão do estudo das chamadas “novas literaturas em inglês”, desenvolvidas no final dos anos 1970, nos países que faziam parte da comunidade britânica, tais como a Tanzânia, terra natal do escritor.
No Brasil, pelo menos no âmbito das avaliações acadêmicas na área de Humanas, as atividades artísticas de docentes e discentes ainda são vistas com certa desconfiança no meio, como se elas estivessem apartadas das pesquisas desenvolvidas ou discutidas no âmbito das universidades. De modo que um Prêmio Nobel concedido a um professor cuja ficção é fruto também de sua pesquisa poderia acender novamente a discussão a esse respeito.
Uma outra questão que surge dessa premiação é a da língua escolhida pelo escritor, o inglês, a língua do colonizador, e não o suaíli, a língua também falada em seu país. Por vezes, opta-se por escrever na língua do colonizador para que o “recado” seja ouvido mais facilmente e por um maior número de pessoas. Feita essa escolha, pergunta-se, contudo, onde ficariam as especificidades de cada cultura expressas justamente na língua?
Para a filósofa francesa Barbara Cassin, por exemplo, é preciso compreender como as diferentes línguas produzem mundos diferentes, comunicam esses mundos e inquietam umas às outras. Portanto, afirma Cassin, a escolha de língua que não seja “universal” seria “um gesto filosófico e também, talvez hoje sobretudo, um gesto político”, que implica uma pergunta: “Qual tipo de mundo, qual ‘globalização’ nós queremos? Resposta: há dois que não queremos, que podemos caracterizar assim: nem totalmente em inglês, nem nacionalismo ontológico”. Como atuar nesse entrelugar? Talvez a obra de Gurnah possa dar uma grande contribuição a esse debate.
Por fim, o Nobel ao escritor africano, cuja obra ainda é inédita em português, pelo menos no Brasil, acabará lançando luz sobre a figura do tradutor, uma vez que será através dele que a obra de Gurnah será conhecida por uma boa parcela dos leitores. Mas o tradutor é muitas vezes um deslocado: quase sempre seu nome e trabalho são “excluídos” dos debates sobre a obra que ele ajudou a construir em outra língua e cultura. Contudo, é ele, como afirma a artista chilena Cecilia Vicuña, outra deslocada, radicada nos Estados Unidos, o primeiro a dar boas-vindas aos estrangeiros, porque “o papel do tradutor é ser o comunicador entre os mundos, por isso a cultura atual o suprime”, conclui a artista. Essas questões só vieram à tona em razão da escolha pela diversidade da Academia Sueca.
*É PROFESSORA DO CURSO DE ARTES CÊNICAS E DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA TRADUÇÃO NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.