“O Romance Luminoso”, de Mario Levrero é uma obra que narra o cotidiano de um autor que precisa escrever um romance patrocinado por uma entidade de renome. Entretanto, como dinheiro não compra inspiração, Levrero se vê envolvido na narração de seu cotidiano, em um apartamento no centro de Montevidéu, bem como, de suas visitas, seus interesses amorosos, de suas oficinas literárias online e do que encontrou na leitura de romances policiais – sua maior obsessão literária – ou no computador, programando, jogando ou procurando por sites duvidosos. Em formato de diário, mostra mais o autor fugindo de seu projeto de escrita do que se dedicando a prepara-lo e finalizá-lo, o que reside, em nossa opinião, numa tacada acertada do autor ao mostrar o quanto foge do objetivo todos aqueles que têm um trabalho por terminar. A despeito de seu protagonista ser um escritor, tal fuga pode ser verificada em todo tipo de profissão, algo com parentesco ao famoso “O Escrivão” ou “Bartleby”, o Escriturário, do escritor norte-americano Herman Melville (1819-1891), no qual um novo escrivão, Bartleby, é contratado e trabalha, inicialmente, eficiente e interessado, “realizando uma quantidade extraordinária de trabalho como se há tempos estivesse faminto por algo para ler e escrever”, até chegar o dia em que, chamado para fazer algo, afirma, “Eu preferiria não fazer”, nessa postura continuando até não fazer absolutamente nada.
Em Levrero, o narrador, gastando mais de 500 páginas à escrita de um diário, apresenta ao leitor coisas que entendia precisar fazer antes de terminar o livro, como, por exemplo, ter alguns meses de folga para aproveitar o dinheiro da bolsa, tentar tornar confortável a casa onde mora há algum tempo, procurar romances policiais que ainda não fazem parte de sua biblioteca pessoal e ajustar os programas do seu computador para que facilitem mais sua vida, entre outros. Ou seja, afastando-se da elaboração de um diário sobre o processo de escrita, o narrador cria, sim, um diário da procrastinação, de adiamento, de fuga. Sua obsessão revelando-se não ser o ato de escrever, mas, sim, o de ler. Um trecho? “Sábado, 5, 3h13. Aqui começo este “Diário da bolsa”. Há meses tento fazer algo nesse estilo, mas vinha me esquivando sistematicamente. O objetivo é pôr a escrita em andamento, não importa o assunto, e manter uma continuidade até criar o hábito. Tenho que associar o computador à escrita. O programa mais utilizado deverá ser o Word, o que significa desarticular uma série de hábitos cibernéticos nos quais estou submerso há cinco anos, mas não devo pensar em desarticular nada, e sim em articular isso. Todos os dias, todos os dias, mesmo que seja uma linha para dizer que hoje não tenho vontade de escrever, ou que não tenho tempo, ou dar qualquer desculpa. Mas todos os dias. Com certeza não farei tal coisa. Isso é o que a experiência me diz. Não obstante, tenho esperança de que desta vez será diferente, porque tem a bolsa no meio. Recebi a primeira metade do total, com isso poderei me manter até o fim do ano num ócio razoável.”
Aos poucos, esse diário vai revelando detalhes íntimos de Levrero e de sua situação mental ligada ao casamento rompido, à nova relação estabelecida, ao desejo proibido por outra pessoa. Somam-se, a isso, as lembranças das visitas, da leitura, do computador e dos sonhos que ele, como se estivesse em uma terapia, narra, detalhadamente, ao leitor. A importância desses sonhos? Em sua procura por interpretá-los, o narrador descobre que as dificuldades que acontecem no plano psicológico estão estritamente ligadas às dificuldades que enfrenta na vida real, advindo dai o bloqueio para terminar seu livro, por exemplo. Mas, segundo a crítica, dois momentos são “luminosos” para que o narrador consiga vencer tais obstáculos. Um em que ele descreve um cachorro farejando um arbusto, outro em que ele observa o embate entre uma aranha e uma vespa. Ambos o hipnotizam. Em suas palavras, “esses são momentos que revelam a ele o tecido com que o mundo é feito, a maneira incomum e doida com que a vida funciona”.
Nas palavras de estudiosos de sua obra, “Comparando com o que é padrão na vida das pessoas, se dedicar à literatura é uma coisa incomum e doida. É essa visão romantizada de que escrever é árduo, de que há algo mágico por trás da escrita, de que o escritor é um ser atormentado pelos seus pensamentos e por aquilo que quer, mas não consegue, colocar no papel. Eu fico entre concordar com essa visão e discordar. Concordar porque realmente considero a escrita algo exaustivo, que eu nunca seria capaz de fazer. Discordar porque, como qualquer outra profissão, escrever é só mais uma das tarefas com que uma pessoa pode ocupar sua vida. Mais ingrata, talvez, mas ainda assim, só mais um trabalho, e o escritor não é um ser mais mágico e iluminado do que um contador. Mas viver no campo da magia, se enxergar como algo especial, como alguém que vê além e faz parte de algo exclusivo, um clube com pouquíssimos membros, faz parte da personalidade do artista. Levrero não é diferente (…) o que há de mais “luminoso” e interessante no livro são os próprios diários, as divagações de Levrero sobre a vida comum, sua observação dos pombos Kardashian. São os momentos em que a vida não cabe dentro da própria realidade, e Levrero acredita que há algo a mais, que se esconde em outras dimensões e que raramente se revelam no nosso mundo. Coisas difíceis de caber na própria escrita”.