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Ianomâmi vê na tela história de seu povo

Por Luiz Carlos Merten, especial para o Estadão

Desde fevereiro, quando A Última Floresta passou em Berlim, Luiz Bolognesi viu seu longa viajar e até ser premiado em três continentes – Europa, Ásia, América do Norte. Neste segundo semestre, as viagens continuarão e ele espera estar presente no México, no Festival de Guadalajara. A Última Floresta tem despertado reações calorosas, mas de todas, e de longe, a mais emocionante foi na semana passada, quando Bolognesi, o xamã Davi Kopenawa (seu corroteirista) e o produtor Caio Gullane apresentaram o filme na comunidade watoriki, na região do Demini, onde foi feito.

“Eles (os povos originários) dormem cedo. Às 7 da noite, já começam a se recolher nas suas redes. A exibição começou nesse horário. Eles viram até o fim. Perguntaram: ‘Terminou?’ Recolheram-se, e isso foi perfeitamente natural. As reações vieram na manhã seguinte. Você precisa entender que os ianomâmis estavam vendo cinema pela primeira vez e era a história deles. Foram o único público que não precisou assistir ao filme com legendas. E, por causa do meu cabelo branco, falaram que eu era um pássaro da floresta com penas brancas. Um deles me disse que eu não era o Luiz Bolognesi, era o Luiz Ianomâmi.”

Devolver as imagens de A Última Floresta ao seu dono, o povo ianomâmi, fechou um círculo, mas a viagem continua. O filme estreia nesta quinta, 9, e, em novembro, terá lançamento mundial em streaming – Bolognesi não antecipa os detalhes porque o anúncio terá de ser feito pela plataforma. Ele já se beneficiara do palanque da Berlinale e até foi premiado, mas não era um filme do qual o repórter pudesse dizer que havia gostado. “O Davi (Kopenawa) também não gosta”, revela Bolognesi.

“Quando fui falar com ele sobre o projeto, Davi disse que não gostaria de fazer um filme como aquele, com o pajé derrotado e o pastor como personagem forte da história. Ele só faria se o filme fosse uma celebração da potência da cultura dos ianomâmis ”

É o que A Última Floresta é, sem sombra de dúvida. Há algo de Hiroshima, Meu Amor, o clássico de Alain Resnais, na estrutura do filme. Contratado para fazer um filme sobre a bomba atômica, Resnais e sua roteirista, Marguerite Duras, concentraram as informações logo no começo, para depois dirigir e manter o foco na história de amor. “Essa ideia veio do Davi, uma parte inicial, documentária e forte, com informações documentadas – os milhares de garimpeiros que atuam ilegalmente em terras indígenas – e logo a história da criação do mundo pelos gêmeos Omama e Yoasi, segundo a tradição dos ianomâmis.”

Entre factualidade e ficcionalidade – Bolognesi conta que A Última Floresta nasceu e buscou recursos como documentário, mas ninguém melhor que ele para saber o que foi feito como ficção. “Só descobri o filme que fiz na montagem.” E ele conta: “Ao chegar à aldeia, comecei a buscar personagens, entrevistei umas 200 pessoas. Uma delas falou por cerca de 20 minutos para a câmera. Só descobri o que havia dito quando aquilo foi traduzido para mim, durante a montagem.”

Os próprios ianomâmis queriam saber como ele ia escolher, naquele material, quem seriam seus “atores”. “Eu dizia que a câmera é que ia escolher, e era verdade. A câmera tem uma relação amorosa com certas pessoas. Vale para atores profissionais e naturais. A câmera ama.” Os dados são todos reais, aquilo que o noticiário revela todo dia. Garimpeiros ilegais continuam invadindo a floresta, derrubam árvores, envenenam rios e, nessa nova tragédia, espalham covid entre os indígenas. Nesse quadro, surge uma história mítica sobre a fundação da nação ianomâmi.

Uhiri, a terra-floresta, é o que chamamos de natureza, um espaço mítico que, no imaginário dos ianomâmis, é povoado por espíritos xapiripë, que ficam brincando nas matas. Segundo a tradição, tudo começou com a copulação do demiurgo Omama com a filha do monstro aquático que domina as plantas cultivadas. Omama representa a criação, seu irmão gêmeo Yoasi é a destruição. Quando a câmera mergulha na água, ao som de um recitativo que é a língua do povo originário – “Os ianomâmis não produzem poesia porque a língua deles já é (poética)” -, é praticamente impossível para o cinéfilo não pensar no mistério de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, o longa de Apichatpong Weerasethakul que venceu a Palma de Ouro, em Cannes

Bolognesi não gosta de ficar falando sobre suas referências, mas admite. “Já que você tocou no assunto, sim, Tio Boonmee foi muito importante no processo de A Última Floresta. Vimos e revimos o filme, e meu fotógrafo, o Pedro Marquez, participou de um evento com Apichatpong em Portugal. Discutiram os aspectos mágicos e a concepção visual de Tio Boonmee, que terminou impregnando A Última Floresta.” É mais um grande filme que vem somar-se aos destaques brasileiros deste ano – Piedade, Acqua Movie, King Kong en Asunción, Cine Marrocos e Veneza.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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