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O Uruguai e sua Literatura (18): Mario Levrero

Jorge Mario Varlotta Levrero (1940-2004) foi um escritor uruguaio dedicado a várias instâncias do livro, da leitura, das artes e da cultura em geral. Livreiro, roteirista e editor de quadrinhos, Levrero também foi fotógrafo e idealizador de oficinas literárias entre o final do século XX e início do século XXI. Com cerca de quarenta anos dedicados à escrita, inte­grou a corrente conhecida como “os raros na literatura uruguaia”, os quais, não produzindo o “realismo” ideológico dominante nas letras nacionais desse período, atuavam em circuitos culturais voltados ao surrealismo, não metódicos e mais imaginativos. Em outras palavras, Levrero produzia de crônica a folhetim, passando pelo policial, pelo cômico e pelo cinema, sem se esquecer dos jogos de engenho e de palavras cruzadas publicadas em jornais ou revistas de circulação de massa. Era um homem dedicado à escrita de diversos textos de hu­mor geralmente assinados com diferentes pseudônimos, bem como, de narrativas curtas, de diários e de novelas. Uma produção tão multifacetada que, frequentemente, era associada ao pós-modernismo por seus estudiosos.

De humor irônico, e algumas vezes voltado ao parapsicológico, à indagação incons­ciente nos estados hipnóticos e aos desdobramentos da personalidade, seu narrador, em primeira pessoa, detalhista e muito sensível, o associam à narrativa inicial de Franz Kafka e do fantástico. Já a quebra da lógica e da linearidade narrativa revelam um autor propenso a construir um efeito de estranhamento em eu texto. Suas novelas “La ciudad” (1970; 1977), “París” (1979) e “El lugar” (1981), apresentam esse estilo kafkiano. De acordo com especialistas, nelas o autor deixa de lado as leis de causalidade para favorecer o sonho, a infância e a memória. O que levava ao esgotamento do cânone realista de então? No Uruguai, a sociedade encontrava-se em processo de transformação, com os escritores tradicionais recusando a verossimilhança e voltando-se para a sub­jetividade. A narrativa transparente tornava-se multialusiva, fantásticas, alegórica, lúdica e lírica.

No infantil “El sótano: cuento para niños” (1966-7), por exemplo, o personagem Carlitos mora em uma casa em que novos cômodos surgem todos os dias. As coisas mudam sempre de uma maneira que ele nunca chega a conhecê­-las todas. Um dia, porém, ele descobre uma adega. A porta é fechada com um armário e Carlitos começa a descobrir o segredo do outro lado. Quando ele pergunta a seus pais sobre o que está escondido do outro lado, eles o proíbem terminantemente de entrar. Carlitos começa a procurar, então, as chaves que podem levá-lo aos mistérios desta sala oculta e proibida. E descobre que são os mais velhos, como sua avó, seu avô e o chefe dos jardineiros, as pessoas que sabem detalhes que podem ajudá-lo ou confundi-lo em sua tentativa de descobrir o que está escondido no porão.

Levrero torna-se, então, um exemplo de autor que pensava a literatura como uma lingua­gem-limite. Uma possibilidade de colocá-lo no ponto de encontro entre o real e o delírio: num entre-lugar. Suas digressões (divagações), desvios (imprecisões) e irreverências (mudanças) promovendo um desvio (alteração) do texto tradicional, de forma que, segundo o crítico Silviano Santiago, um novo texto é recriado, não valendo menos que os textos tradicionais, mas, sim, colocando a América Latina em posição de destaque por sua colaboração à cultura ocidental. Em seu livro de contos “El portero y el outro”(1992), o leitor já percebe a brusca mudança formal e temática na produção do autor. Por sua vez, os contos de “La máquina de Pensar en Gladys” (1970) e “Espacios Libres (1987)”, segundo a crítica, misturam textos de épocas e características distintas, formando um painel onde melhor se visualiza o mundo ficcional do autor.

Em “El portero y el outro” (1992), o leitor também encontrará passagens de diários e de memórias do autor. Nele, seu narrador-personagem, ao interromper ou intervir no relato, questionando o mesmo, abre espaço para um outro modo de escritura experimental na sua obra: a escrita autobiográfica. Em uma América posterior aos anos 70, arrasa­da pela ditadura, o romance, incapaz de estruturar a realidade para o indivíduo, surge como uma forma capaz de fazer desabrochar a subjetividade do autor pela sensação de insuficiência sentida pelo ser. Neste caso, explicitando memórias ou fatos autobiográ­ficos, os depoimentos de Levrero, em sua obra, questionam e problematizam o espaço que cabe aos gêneros literários tradicionais, como o romance.
Presente no relato “Diario de un canalla” (1992), continuando com o romance “El discurso vacío” (1996), e finalizando com sua obra póstuma “Novela luminosa” (2005), esta fase, na vida de Levrero, coincide, segundo a crítica, com a invenção de seu nome de autor a partir do pseudônimo criado com seu segundo nome e sobrenome materno: Mario Levrero. Ou seja, o nome do autor como se este fosse um outro a viver em sua escritura, figurado de diversos modos e com distintos nomes, a saber, Espírito, daimon, “diablillo”, “aquello”, na tentativa de dar coerência e fundamento ao processo criativo e ao trabalho do escritor.

Em suma, uma escrita autobiográfica que, também presente nos romances “El alma de Gardel” (1996), “Bur­deos” 1973” (2013), além das crônicas jornalísticas do suplemento cultural Posdata (anos 90), reunidas sob o título “Irrupciones”, revelava-se recurso de escrita capaz de potencializar os alcances de suas ficções na socieda­de e na cultura de então.

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