Por Bruno Cavalcanti, especial para o Estadão
Era em Guilherme Sant’Anna que Elias Andreato mirava quando idealizou e roteirizou, em 2016, Canto Teatral para Bola de Nieve, concerto no qual contava a trajetória do pianista, cantor e compositor cubano Ignacio Jacinto Villa Fernández (1911-1971), o Bola de Nieve, por meio das canções que compôs e gravou ao longo de mais de 40 anos de carreira.
Convidado, o ator não pôde estrelar o espetáculo, que acabou nas mãos da cantora paulistana Fabiana Cozza. Registrado, o show deu origem a cultuado álbum (Ay, Amor), lançado no ano seguinte pela Biscoito Fino.
O diretor então emendou sucessivas tentativas de levar o ator para os palcos num espetáculo alicerçado em seus dotes vocais. “Eu achava que ele tinha que fazer alguma coisa com música, que tinha tudo a ver, porque ele canta muito bem, tem uma voz linda, e é um ator deslumbrante”, se derrete Andreato, que, após apresentar uma série de propostas (entre elas uma com base no repertório de Assis Valente), finalmente conseguiu convencer Sant’Anna com um argumento irresistível: Cartola (1908-1980).
“Fiz quatro roteiros e esse foi o primeiro que ele aceitou. Ele me deu trabalho”, graceja. Embora já tivesse composto o elenco de espetáculos musicais, entre eles o blockbuster O Homem de La Mancha, dirigido por Miguel Falabella em 2014, o ator ainda precisou lidar com a insegurança de enfrentar um espetáculo solo, construído em volta de um repertório de canções populares
“Essa coisa de cantar é um desafio. Eu já tinha feito alguns musicais, mas nada assim. É a primeira vez que faço um monólogo e, ainda por cima, cantando, é uma ousadia e tanto”, conta o ator, que encontrou suporte na confiança depositada pelo diretor em seu talento. “Elias é um Midas dos monólogos, ele constrói roteiros sensíveis e muito poéticos. Eu confiei na intuição dele e acho que está dando certo. Estamos colhendo os frutos e vendo que esse era mesmo o momento mais adequado.”
Acompanhado do músico e maestro Jonathan Harold, Sant’Anna sobe ao palco do Teatro Vivo, em São Paulo, para estrelar Cartola’s Jazz, recital em que interpreta clássicos do repertório do compositor carioca vertidos para o jazz e costurados por textos de autores negros, entre eles o poeta pernambucano Solano Trindade (1908-1974), o ativista e escritor norte americano Martin Luther King (1929-1968) e o próprio Cartola.
“São textos que pontuam os pensamentos sobre o amor. O Martin Luther King passou a vida sobre a Terra falando sobre o amor e a necessidade de se buscar esse lado amoroso da não violência, e o Cartola, mesmo na dor da rejeição, coloca essa possibilidade de que o amor é o foco central da vida”, conceitua Andreato, que acredita que, a despeito dos textos, o que realmente vai sublinhar o caráter poético do espetáculo é a aproximação da obra do autor de O Mundo É um Moinho com o jazz.
“Esse é o dado que considero o mais importante. Estamos tentando usar nosso ofício para propor essa discussão musical poética, e o jazz é o que mais se aproxima dessa poesia e delicadeza, não que o samba também não tenha sua própria poesia, mas o jazz é a linguagem mais fluente nesse sentido”, observa o diretor.
Aproximar a obra de Cartola do acento jazzístico é, também na visão do encenador, uma subversão atraente. “Os profissionais mais puristas não se sentem à vontade para fazer isso, muitos acreditam que se trata de uma ofensa, mas essa é a possibilidade do teatro, a de experimentar coisas, e só é possível porque o Jonathan, nosso maestro, tem uma formação clássica e popular que consegue entender muito bem essa discussão que propomos. Só o ator e músico que faz teatro pode se deixar experimentar a esse ponto de usar o ofício para ter essa discussão musical e poética ”
Para Harold, contudo, as duas linguagens são próximas o bastante para promover um encontro natural. “A black music ao redor do mundo tem essa interferência uma na outra. O suingue do jazz e o do samba não são necessariamente parecidos, mas são equivalentes, então o suingue é diferente, mas percebemos um parentesco que torna mais fluido esse trabalho”, comenta.
Embora esteja curtindo o processo de produção, Sant’Anna não esconde alguns desejos de futuros trabalhos nesta mesma seara, entre eles o registro fonográfico do espetáculo. “Preciso saber primeiro como esse vai caminhar para ir me soltando, mas temos alguns sonhos. Jogando conversa fora aqui, algumas coisas apareceram. Eu não gosto de colocar o carro na frente dos bois, mas quem sabe?”, finaliza.
Cartola’s Jazz cumpre única sessão, neste sábado, 10, às 21 h, dentro da programação digital do Teatro Vivo. A transmissão acontece via Zoom e os ingressos são gratuitos e podem ser retirados via Sympla. Em cena, Guilherme Sant’Anna é acompanhado pelo piano de Jonatan Harold e por um trio de músicos que, devido às restrições sanitárias da covid-19, entrou em estúdio para realizar a gravação das bases do espetáculo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.