Por Rodrigo Fonseca, especial para o Estadão
Incomodado com uma recorrente pasteurização do cinema, com a repetição de fórmulas e o requentar de ideias, o cineasta Steven Soderbergh defende que os gêneros narrativos mais recorrentes em Hollywood entraram num piloto automático que ele chama de “modo pornográfico”, assim definido por tornar graficamente explícito o que deveria ser sutil, sobretudo a brutalidade.
Por isso, há dez anos, desde que tentou refinar o formato do cinema-catástrofe com Contágio (2011) – o longa-metragem mais citado em referência a pandemias, desde que a covid-19 se alastrou -, ele vem se esforçando para filtrar as impurezas dos filões. Passou pelos filmes de ação com A Toda Prova (2011), refletiu sobre os códigos do terror em Distúrbio (thriller todo rodado em iPhone, lançado em 2018) e, agora, apoiando-se na disseminação da plataforma HBO Max (recém-chegada ao Brasil), resolveu repaginar o thriller noir com Nem Um Passo em Falso (No Sudden Move, no original).
Com estreia marcada para esta quinta-feira, 1º, o novo trabalho do ganhador do Oscar de melhor direção por Traffic: Ninguém Sai Limpo (2000) foi regado a aplausos e a críticas entusiasmadas em sua exibição no encerramento do Festival de Tribeca, em Nova York. Parte desta calorosa recepção se deve à atuação de Don Cheadle. Apoiado no talento do ator, o realizador do cult Sexo, Mentiras e Videotape (Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1989) – que também assina a direção de fotografia, usando seu habitual pseudônimo, Peter Andrews – passou em revista aquilo que o noir tem de mais específico: a ambiguidade moral.
“É curioso ver Steven sempre atrás das câmeras, mapeando tudo o que a gente faz, sem dar margens à perda de sutilezas nas nossas atuações. Coisa que poderia acontecer se ele ficasse sentado, assistindo à nossa interpretação por uma telinha de computador”, disse Cheadle ao Estadão, em entrevista coletiva via Zoom, elogiando a experiência da troca com atores de diferentes gerações como Jon Hamm, Julia Fox, Ray Liotta, Matt Damon, (o também diretor) Bill Duke e Benicio Del Toro, com quem contracena nas situações mais tensas do roteiro. “É um filme que passa pela Detroit de ontem para falar da América de hoje, a partir da cobiça que rege as grandes corporações industriais.”
Dono de um Oscar de coadjuvante por Traffic e laureado com o prêmio de melhor ator em Cannes por Che, que Soderbergh lançou em 2008, em duas partes, Del Toro define o processo de criação do filme como uma linha de montagem, no qual todos se complementam. “No esquema de Steven, os atores se combinam de modo a permitir que você veja como os personagens se comportam sob diferentes ângulos. A medida do nosso rendimento em cena é desempenho do colega.”
Sintonizado com a tradição narrativa de escritores como Dashiell Hammett (1894-1961), fiel a toda uma linhagem de narrativas noir, mesmo sendo calcado em um roteiro original de Ed Solomon, Nem Um Passo em Falso é um estudo sobre o ato de atraiçoar, em uma Detroit dos anos 1950, onde a aspereza está no ar, em meio a uma indústria automobilística em ebulição. A trama lembra clássicos do gênero como A Morte Num Beijo (Kiss Me Deadly), dirigido por Robert Aldrich, em 1955.
“A gente ouvia muito falar em O Grande Golpe, de Stanley Kubrick, entre os jornalistas que nos viram em Tribeca, por haver um clima de gângsteres e por haver uma triagem da exploração da confiança alheia”, explica Del Toro, que encarna o ladrão Ronald Russo.
Seu personagem é um exemplar do submundo de fracassados retratados por Soderbergh em uma narrativa tensa, como raras vezes o cineasta responsável por projetos autorais como Kafka (1991) alcançou. Fiel à ideia de libertar o noir de qualquer ranço “pornográfico” (leia-se de um uso desmedido da violência), ele se apoia mais na tensão do que na agressão a fim de mapear valores éticos em um mundo oprimido pelo lucro. “É uma fábula moral sobre um homem em busca de redenção”, definiu Brendan Fraser, uma das maiores surpresas da trupe montada por Soderbergh, que rouba várias cenas ostentando muitos quilos acima da sarada silhueta que desfilava pelas telas há duas décadas, em A Múmia (1999) e George da Selva (1997). “Estamos diante de uma realidade onde as grandes companhias automotoras colidiram, deixando um saldo de perda para Detroit e para a América.”
Crime
Escalado para protagonizar The Whale, de Darren Aronofsky (sobre um professor de inglês com obesidade mórbida empenhado em reatar a relação com a filha), Fraser entra em Nem Um Passo em Falso como uma das mefistofélicas figuras que levam o ex-presidiário Curtis (Cheadle) a voltar ao crime, envolvendo-o em um roubo ao lado de Ronald Russo e do instável Charley (Kieran Culkin, irmão mais moço de Macaulay Culkin).
Os três usam máscaras brancas como disfarce no roubo de um documento na casa de um sujeito cercado de mentiras: Matt Wertz (David Harbour, o Jim Hopper de Strangers Things). Mas o que era para ser um assalto dos mais corriqueiros vira uma armadilha, envolvendo empresários e criminosos de alto quilate. “Nesse filme tem alguma coisa de O Poderoso Chefão, tem alguma coisa de Era Uma Vez Na América, tem alguma coisa de um momento da história americana em que a feitura de um filme, em sua linhagem mais autoral, captava o espectador, como se fez no cinema dos anos 1970”, disse Bill Duke, lendário ator, diretor e mito das lutas raciais nos EUA, que entra em cena como um dos mentores de Curtis.
Astro em ascensão nas plataformas digitais e no cinemão (a partir do dia 9, ele será visto como o herói soviético Guardião Vermelho no filme Viúva Negra), Harbour enxerga Nem Um Passo em Falso como um sinal dos tempos da nova dramaturgia que brota de streamings como a HBO Max.
“Não se sabe como a realidade dos lançamentos em circuito vai ficar, por mais importante que a experiência coletiva do cinema seja. Tem um novo mundo midiático aparecendo na nossa frente e a gente precisa saber como aportar nossa criatividade nele. As plataformas hoje parecem abertas para narrativas de abordagens mais sofisticadas”, diz Harbour. “Nosso desafio hoje no cinema é saber qual estrutura vai apoiar os pequenos filmes, mais autorais, para a telona.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.