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Cultura

Crimes inspiraram grandes reportagens

Por Ubiratan Brasil

A literatura policial sempre fascinou leitores por sua narrativa arquitetada com categorias muito claras: personagem, investigação, demanda e conclusão. Na verdade, a escrita de suspense também se aproxima da psicanálise no sentido de que há sempre, em ambas, uma verdade encoberta a ser desvendada. Não à toa, o escritor italiano Leonardo Sciascia usava o suspense como veículo para falar sobre questões de identidade.

Dessa forma, a leitura de Os Piores Crimes da Revista New Yorker, livro lançado agora pela jovem Editora Rua do Sabão e organizado por Felipe Damorim, é um bom ponto de partida para se entender alguns traços da psique americana. Trata-se da seleção de oito reportagens publicadas entre 1971 e 2017, todas escritas com texto apurado, uma marca registrada da revista fundada em 1925.

E nada melhor que uma forma literária que permite ao leitor entrar nos aspectos mais obscuros da realidade, além de ser uma forma narrativa aberta, que não se limita a narrar um assunto, mas permite ir além, na sociedade. Foi com tal olhar que Truman Capote escreveu uma série de artigos publicados na New Yorker, em 1965, que seriam a gênese de um livro clássico, A Sangue Frio.

Assim, o relato dos fatos que cercavam o assassinato de um fazendeiro e sua família em uma pequena cidade do Estado do Kansas, em 1959, entrou para a história das relações entre jornalismo e literatura, criando um texto apurado e definitivo sobre como um momento traumático pode marcar profundamente uma sociedade considerada provinciana. Lançou também um conjunto de regras básicas, que seria avidamente utilizado pelos seguidores do jornalismo literário no mundo inteiro.

As histórias selecionadas para Os Piores Crimes, portanto, promovem uma viagem literária por meio de uma indagação, de uma busca da verdade que justifique a própria escrita literária. Duas narrativas são conhecidas do leitor brasileiro graças às versões cinematográficas que seus personagens inspiraram: o franco-atirador Chris Kyle, interpretado por Bradley Cooper no controvertido longa Sniper Americano, de Clint Eastwood, e o massacre dos estudantes de Columbine, retratado por Gus Van Sant em Elefante.

Chris Kyle foi o mais bem-sucedido franco-atirador da história militar dos Estados Unidos, com 160 mortes promovidas na Guerra do Iraque. E, se tal cifra já não lhe inspirasse um duvidoso orgulho, ele ainda alimentou a controvérsia ao chamar os muçulmanos de “selvagens” em seu livro de memórias. Considerado herói por muitos, Kyle, que sobreviveu a quatro perigosas idas ao Iraque, foi ironicamente assassinado no Texas por Routh, um perturbado veterano de guerra, a quem tentava ajudar, em 2013.

A trajetória de Kyle, marcada por glórias e o fim trágico, é narrada com precisão por Nicholas Schmidle em um dos maiores artigos reproduzidos no livro. O que se destaca é sua objetividade em preferir gastar uma ou duas linhas para descrever um crime enquanto os motivos que levaram a pessoa a tal prática ocupam parágrafos e mais parágrafos.

Também complexo é o artigo assinado por Malcolm Gladwell, Os Limiares da Violência, em que busca explicações sobre a popularização de atentados em escolas americanas. E o início do texto já é perturbador: certa noite, uma mulher lavava louça quando notou um rapaz em seu quintal. Ele usava um capuz e não evitava as poças d’água enquanto caminhava até um depósito de aluguel. A mulher ligou para a polícia que, lá chegando, encontrou John LaDue, 17 anos, rodeado por artefatos com que produziria coquetéis molotov, mas uma variante mais mortal que a tradicional, usando óleo de motor e alcatrão em vez de gasolina

Em seu quarto, foi encontrado armamento pesado, com que pretendia assassinar o maior número possível de alunos da sua escola. Detalhe: a chacina começaria com sua família, para que conseguisse a maior quantidade possível de mortos. “Tiroteios em escolas são um fenômeno moderno e envolvem principalmente jovens brancos”, escreve Gladwell. “E, não surpreendentemente, dada a disponibilidade imediata de armas nos Estados Unidos, o fenômeno é predominantemente americano.” Além disso, continua ele, o difícil é enquadrar os atiradores em qualquer tipo de padrão.

Afinal, se Evan Ramsey, que fuzilou duas pessoas em sua escola, tinha uma vida caótica (mãe alcoólatra, foi abusado física e sexualmente), Kip Kinkel, que atirou em seus pais, matou dois colegas e feriu 25 pessoas em sua escola, tinha uma família amorosa: era filho de professores tão queridos que 1.700 pessoas compareceram ao funeral deles.

“Os massacres agora envolvem meninos que antes se contentavam em brincar com kits de química no porão”, observa Gladwell. “O problema não é que existe uma reserva infinita de rapazes profundamente perturbados dispostos a pensar em atos horríveis. É pior. É que os rapazes não precisam mais ser profundamente perturbados para contemplar atos horríveis.”

Os mistérios da mente inspiram ainda outro artigo fascinante, Lembranças de um Crime, assinado por Rachel Aviv. Uma aposentada foi assassinada em 1989, em seu apartamento, no Nebraska. Logo, seis pessoas confessaram participação no crime, descrito com detalhes por todos. Condenados, foram presos, mas a evolução tecnológica trouxe evidências genéticas que, 19 anos depois, inocentavam todos os seis. Mesmo assim, eles se lembravam do crime de maneira muito vívida.

“Em nenhum outro caso nos Estados Unidos memórias falsas de culpa perduraram por tanto tempo”, observa Rachel. “A situação é um caso de estudo sobre a maleabilidade da memória; uma noção implausível, a princípio recebida com dúvidas, cresce até se tornar uma crença firmemente enraizada que rearranja a autobiografia e o senso de identidade de uma pessoa.”

Eli Chesen, um psiquiatra do Nebraska ouvido pela jornalista e que avaliou todos os réus após sua soltura, contou: “Eles ainda acreditam, em níveis diferentes, terem sangue nas mãos”. E memórias fictícias não afligem apenas aqueles que foram traumatizados – segundo especialistas consultados por Rachel, pessoas que tiveram vidas estáveis também têm problemas para distinguir entre experiências que elas mesmo tiveram e aquelas que foram absorvidas por meio das histórias de alguma pessoa.

“Estudos demonstram que pessoas acabam acreditando que estiveram em um acidente durante um casamento de familiares, foram atacadas por um animal, ou até beberam chá das cinco com o príncipe Charles se familiares lhe disserem que viram acontecer”, observa a jornalista, acrescentando um dado aterrador: um estudo de 2015 na revista Psychological Science descobriu que 70% das pessoas, quando submetidas a interrogatórios altamente repetitivos e sugestivos, acabariam acreditando que teriam cometido um crime. “Nos últimos 30 anos, aproximadamente cem homens e mulheres nos Estados Unidos confessaram crimes pelos quais foram depois absolvidos pela evidência genética.”

Reportagens clássicas

Notícias publicadas em jornais e revistas normalmente têm vida curta, interessando ao público leitor no momento em que são editadas. Algumas narrativas, porém, pela força de sua escrita e importância do assunto, ganham tal magnitude que acabam eternizadas em livro.

Exemplo clássico é Hiroshima (Companhia das Letras, disponível em e-book), célebre reportagem de John Hersey que traz um retrato em palavras de seis sobreviventes da bomba atômica em 1946, um ano depois da explosão. A reportagem foi inicialmente publicada na revista The New Yorker, edição que estampava a data de 31 de agosto de 1946 na capa. Os exemplares estavam envolvidos por uma faixa branca, que informava uma medida inédita: das 68 páginas daquele número, havia apenas um assunto habitual, a programação cultural semanal de Nova York – o restante foi ocupado pelo impactante texto de Hersey.

Histórias de pessoas comuns, cujas vidas ganham outra dimensão quando descritas por profissionais competentes, também geram muito interesse. É o caso de O Livro das Vidas (Companhia das Letras), que traz obituários publicados pelo jornal The New York Times. Antes de resenhar “mortos ilustres”, os textos se preocupam com pessoas que dificilmente ocupariam as páginas de um jornal. É o caso de Angelo Zuccotti, o responsável pelo cuidado da porta de El Marocco, famosa boate nova-iorquina, e que considerava sua atividade uma arte.

Entre os brasileiros, é válido lembrar do trabalho de Joel Silveira (1918-2007), lendário jornalista cujo olhar apurado (e, muitas vezes, crítico) rendeu descrições saborosas e até perversas, o que lhe garantiu o apelido de “víbora”, conferido por alguém do mesmo quilate, o empresário Assis Chateaubriand.

De Silveira, a Companhia das Letras publicou A Feijoada que Derrubou o Governo, conjunto de reportagens, artigos e crônicas que retratam desde figuras políticas (como Juscelino Kubitschek, João Goulart e Jânio Quadros) a anônimos com trajetórias fascinantes – como o chefe de polícia de Getúlio Vargas, João Alberto Lins de Barros, que intimava os amigos a comparecer de madrugada à delegacia com o objetivo de formar uma roda de pôquer.

OS PIORES

CRIMES DA NEW YORKER

Organizador: Felipe Damorim

Editora: Rua

do Sabão (262 págs., R$ 59)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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