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Padre Júlio e a rotina em prol dos excluídos

Por José Maria Tomazela

O sol ainda não clareia as ruas da Mooca, na zona leste de São Paulo, quando pães, bolachas e sucos começam a encher a mesa para o café da manhã no pátio da Igreja de São Miguel Arcanjo. Após a missa das 7 horas, o padre Júlio Lancellotti, de 72 anos, vai se colocar à frente de uma frota de carrinhos de supermercado que vão servir café para, no mínimo, 500 pessoas, público formado por moradores de rua. É uma rotina que em 2021 completa 36 anos.

O trabalho que o padre paulistano realiza desde que foi ordenado, em 1985, já lhe rendeu reconhecimento internacional, mas também críticas. Em uma das mais recentes, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) questionou a índole do padre, depois que o religioso se encontrou com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no último dia 15. “O Lancellotti deu uma Pajero para alguém há um tempo atrás. Os caras colocam o Lula com um padre pensando que fosse um padre sério, responsável. É daquele padrão esse padre”, disse a apoiadores.

O presidente se referia a um processo no qual o padre Júlio teria sido extorquido por um ex-interno da antiga Febem e pela mulher dele. O casal ameaçou o padre com acusações falsas de pedofilia para obter vantagem financeira. Em 2004, o ex-interno comprou um veículo Pajero financiado pelo padre, que acabou denunciando a extorsão. O casal chegou a ser detido e libertado em 2008, mas foi preso novamente em 2011, após o ex-interno ter ameaçado Lancellotti de morte. O casal foi condenado a 7 anos e 3 meses de prisão por crime de extorsão.

O padre diz que o ex-presidente Lula pediu por meio de sua assessoria para fazer uma visita à Casa de Oração, uma de suas obras. “Qualquer um que me pedisse eu não diria não. O ex-presidente foi sem cobertura de imprensa. Eles mesmos puseram nas redes sociais, eu não pus nas minhas. Isso gerou uma reação do presidente e os ataques que sofri”, contou. “No fim do encontro, abençoei o ex-presidente. Se o presidente (Bolsonaro) for lá nos visitar, ele será bem recebido e abençoado.”

Intolerância nas redes

Na terça-feira passada, dia 1º, o padre usou as redes para denunciar ataques de uma “milícia religiosa” formada por jovens católicos que não gostaram de ele ter indicado leituras como Teologia e os LGBT+, do padre Luís Corrêa Lima. “As missas aos domingos são online e a gente costuma ter 14 ou 15 mil visualizações. Neste domingo, indiquei livros com entrevistas do papa Francisco e um livro de um padre do interior de São Paulo que é ousado, uma releitura da Bíblia a partir da filosofia do bode expiatório.”

A polêmica ocorreu, segundo ele, após ter indicado a obra do padre Corrêa. “É um jesuíta, estudioso da questão de gênero. Não é um livro panfletário, nem leviano, e foi editado pela Vozes, que é uma editora católica. A própria editora tinha me mandado e já está esgotado”, explicou. “Esses grupos mais tradicionalistas adulteraram a minha foto com o livro, o que não é uma coisa lícita. E começaram a me bombardear.”

Os ataques ao padre foram feitos inclusive por robôs, segundo ele. “Alguns eu bloqueei e eles recriaram quatro, cinco vezes. Conversei com uma jovem e perguntei por que alteraram a minha foto. Ela disse: ‘Você é um herege, um comunista que não tem salvação, você vai para o inferno’.”

Segundo ele, houve manifestação também no WhatsApp. “Até em meu WhatsApp entraram, todos de fora de São Paulo”, lembra padre Júlio. “Um deles, mais piedoso, disse: ‘Te respeito porque você é padre, mas você é um condenado. Estou rezando pela sua conversão porque você vai para o inferno’.”

Não é a primeira vez que o padre sofre ataques por defender os LGBTI+. Em 2015, ele foi condenado por membros da Igreja Católica após lavar os pés da atriz trans Viviany Beleboni, que se crucificou durante a 19ª Parada Gay, em São Paulo.

Na homilia da missa de segunda-feira passada, em homenagem à Santíssima Trindade, ele já havia dado um recado a quem é contra a diversidade. “Deus não é binário, é trinitário. Aberto a tudo e a todos, é o Deus que acolhe a diversidade, é o Deus amoroso e compassivo, comunitário, solidário. Quem quer um Deus só para si não quer o Deus de Jesus.”

Missão cotidiana

Padre Júlio tem um histórico de brigas em defesa de moradores de rua, menores infratores, ex-detentos, travestis e transexuais. “Um grupo que cresceu muito é o LGBTI+. As mulheres trans, principalmente, estão feridas. E elas ficam surpresas porque eu as trato bem”, diz. “E aí as pessoas me atacam. Isso me deixa triste. É uma coisa deliberada. Alguém usar a técnica de mudar a imagem, de por mensagem no meu perfil como se eu estivesse mandando… Com a tecnologia tudo é possível. Alguém pode me colocar vestido de nazista, com suástica na camiseta, e muitos vão acreditar.”

No dia 2, o padre esteve em audiência com o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB) para levar questões da população de rua. “Estavam nessa reunião, além do prefeito, cinco secretários Levei para ele uma imagem de Santa Dulce dos Pobres”, conta padre Júlio. “Ele foi receptivo, mas vejo que o Brasil está muito pulverizado e com um individualismo forte. Muitas vezes as pessoas veem a solidariedade desvinculada de uma transformação.” Segundo o padre, o prefeito disse que vai melhorar os abrigos de São Paulo. “Eu disse: ‘Pois é, nunca vai ter abrigo bom, como nunca vai ter cadeia boa’.”

Santa Dulce

Quando os carrinhos voltam vazios do espaço de convivência São Martinho de Lima para a igreja, o padre inicia a distribuição de agasalhos. “Fizemos 2 mil agasalhos com capuz, com a foto de Santa Dulce dos Pobres. Com a pandemia, todos têm de estar com máscaras, que também distribuímos. Entregamos sabonete, desodorante, escova de dente, xampu”, conta. “Distribuímos mil marmitas por dia em áreas como Armênia, Praça Princesa Isabel, Praça da República.”

O gerente administrativo Gabriel Biscaia, de 28 anos, e parte da família – sua mãe, Maria Goretti, e o irmão Aníbal – trabalham como voluntários. “O último trabalho foi na coleta de doações de produtos higiênicos. A gente entra em contato, vê o que ele está precisando e leva aos domingos. Ele faz um trabalho muito efetivo. O padre enxerga as pessoas muito além da religião, no aspecto humano, sem preconceitos.”

Padre Júlio não tem carro – “aliás, nem habilitação eu tenho”, diz – e quase sempre está com a mesma sandália e as mesmas roupas. Ele considera incoerente conviver com moradores de rua e ter carro novo ou algum luxo, mas até por isso acaba recebendo críticas.

“Meus piores momentos são quando vejo moradores de rua sofrendo violência. Quando sofrem violência por causa de mim, quando batem neles e falam: ‘Você é protegido do padre. Vai chamar o padre para ver você apanhar’. Tudo isso é o que se chama hoje de aporofobia, ódio dos pobres.”

A pandemia, segundo ele, agravou as condições de pobreza. “Vejo hoje muita gente na rua, muita gente empobrecida, sem esperança, abandonada. Todo dia recebo milhares de pedidos de oração. Todos os domingos, leio dezenas de nomes de falecidos. Parentes pedem orações para os que ficaram desempregados, para os familiares que perderam. Muitas vezes, a dor do nosso povo é tratada com deboche. E os que defendem os pobres são atingidos pela retórica do ódio.”

Com cabelos brancos emoldurando a vasta calvície e sob o peso da idade que já lhe rendeu uma artrose no joelho, padre Júlio diz não ter intenção de parar. “Essa é minha missão. O arcebispo dom Odilo (Scherer) disse que quem está com os pobres vai apanhar e sofrer como eles. Está claro que o caminho que eu faço é o do fracasso, porque estou do lado de quem é destruído e espezinhado ”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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