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Relendo contos de Suassuna

Por Luiz Carlos Merten, especial para o Estadão

Pronto desde abril de 2020, O Auto da Boa Mentira chega aos cinemas com um ano de atraso, por conta da pandemia. O novo longa de José Eduardo Belmonte baseia-se em histórias – ‘casos’ – narradas pelo escritor Ariano Suassuna. Que ele adorava uma boa mentira, basta lembrar outro auto, o da Compadecida, para provar. João Grilo e Chicó são personagens emblemáticos de uma esperteza à brasileira. O próprio Suassuna esclarecia, em sua aula-espetáculo: “gosto é da mentira como arte”.

São quatro histórias que, no roteiro de João Falcão, deveriam ser unidas por um ator na pele de Ariano. Belmonte achou que ia ficar esquisito, e ia mesmo. A produção pesquisou e encontrou nas aulas do autor – e numa entrevista concedida a Jô Soares – as falas de que necessitava. Belmonte estreou no cinema em 2004 com Subterrâneos e, no ano seguinte, concorreu em Brasília com A Concepção. O filme ilustra sua relação de amor e ódio com Brasília, onde nasceu. É a história de uma seita que suprime as identidades de seus seguidores, fazendo deles mutantes sem ego. A forma acompanha o conteúdo. É um filme de jovem contestador.

O rebelde com causa foi para a Globo sem perder o vigor crítico. Sua obra privilegia o drama, mas eis que ele tenta a comédia. Numa visita ao set do Auto, o repórter ouviu do diretor que a comédia é um gênero difícil. Exige um controle rigoroso do timing. Não era Guimarães Rosa quem dizia? Piada é como palito de fósforo: deflagrada, perde o uso. Belmonte: “gosto de buscar coisas novas, diferentes. Como experiência de arte e de vida, acho que não existe nada melhor. É importante experimentar com compartilhamento. Fazer arte é sair de você mesmo e aceitar que terá novas experiências, quem sabe, transformadoras”.

Belmonte bebeu na fonte dos clássicos – Billy Wilder, Jacques Tati, Jerry Lewis -, sempre uma inspiração para Leandro Hassum, que estrela o primeiro episódio. Ele faz um funcionário de RH, que participa de uma convenção num grande hotel. Nem se fosse invisível seria mais ignorado pelos demais participantes. Mas tem uma coisa – ele é o sósia perfeito de um comediante que apresenta no local seu novo espetáculo de stand-up. Ocorrem duas coisas – surge em seu caminho uma femme fatale (e Nanda Costa está um assombro de beleza e talento, mostrando que não existem papéis pequenos) e Hassum termina assumindo o papel do astro Paulo Mendonça, e fazendo um show em que devolve com juros as agressões que sofreu – esse tema do apagamento vem desde A Concepção, mas, como diria Wilder, essa é uma outra história.

Os demais episódios versam sobre um homem que descobre que seu pai não é quem ele sempre pensou, mas talvez seja o palhaço do circo – Cássia Kis faz a mãe, numa linha diferente da Lurdes de Amor de Mãe, mas igualmente admirável; um gringo que participa de um safári na favela, a cena que o repórter viu filmar; e uma festa de firma, numa agência de publicidade, em que o fato de nunca haver ido à Disney acentua ainda mais a invisibilidade a que a pobre estagiária é submetida. Talvez seja esse o tema embutido nos ‘casos’ de Ariano. Ele contou essa história da Disney para o Jô. Divertia-se com a história de uma tia-avó que detestava o Cabral – aquele, Pedro Álvares – porque, ao descobrir o Brasil, impediu-a de ter uma vida na Europa, por exemplo.

O filme é bem feito, bem interpretado. O mote do episódio com Leandro Hassum é o seu emagrecimento na vida, virando um ex-gordo, mas o humor é mais low profile que o do Auto da Compadecida. O filme pede mais um sorriso que o riso escancarado “A comédia é dramática”, esclarece o diretor. E a grande surpresa – Compadecida, A Pedra do Reino. O Ariano sertanejo não dá o ar da graça. Todas as histórias são urbanas. “Era o atrativo, um Ariano que não era exatamente aquele a que o público sempre esteve acostumado”, esclarece Belmonte. Na era das fake news, a boa mentira pode ajudar a desmontar discursos oficiais.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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