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Baixista capixaba lança álbum de jazz que não paga o pedágio das brasilidades

Por Julio Maria

Andrey Gonçalves é um baixista capixaba, de 41 anos, que vive há oito nos Estados Unidos. Ao voltar para a casa de seus pais em Vitória, no Espírito Santo, depois de uma temporada de estudos no Kentucky, ele se decidiu: “Vou vender tudo o que tenho e voltar para estudar música nos EUA.” Nada foi fácil desde então. Andrey chegou, teve três meses para aprender um difícil repertório a fim de integrar a orquestra de jazz da universidade local e fazer seu mestrado. Mas ainda estava frustrado. Queria saber mais e foi indicado a procurar outro mestrado, focado em jazz, na Universidade de Louisville. Seguiu, então, para uma audição dirigindo por duas horas sobre a neve para ser avaliado, tocando temas de Duke Ellington e Charlie Parker. Ao final, foi admitido com 100% de bolsa para viver sua transformação.

Ele vive hoje em Champaign-Urbana, região de duas pequenas cidades-irmãs que se fundiram em uma terra conhecida por seu poderio universitário. Andrey dá aulas de música na Olivet Nazarene University, em Bourbonnais, ao sul de Chicago, casou-se com uma norte-americana e concebeu seu primeiro álbum de jazz que talvez traduza toda essa “impulsão estratégica” que marca seus passos. Uma extração emocional de temas autorais que tiveram origem em regras de composição aprendidas sobretudo com Jim Pugh, um acadêmico trombonista que já colaborou em faixas de Yo-Yo Ma, Paul Simon, Tony Bennett, Michael Jackson, Madonna, Pink Floyd e Frank Sinatra, mas acaba sendo mais apresentado por sua estada no grupo Return to Forever, de Chick Corea, entre 1977 e 1978.

Nocturnal Geometries é o álbum de um baixista que não partiu de seu próprio instrumento para fazer um tema existir, o que se torna um primeiro componente inusual. Seu pensamento estava no todo – nos arranjos que fez para sopros, nos tempos que propôs ao ritmo ou nas frases melódicas criadas para a execução dos músicos convidados, e nunca em si mesmo. E isso faz uma diferença brutal no resultado. Se pensarmos em gigantes, o acústico Charles Mingus era um pensador do todo ao fazer obras como Goodbye Pork Pie Hat enquanto o elétrico Jaco Pastorius, com toda a sua musculatura, foi um propulsor das quatro cordas quando fez Chicken e quase tudo em sua carreira. A primeira gravação entrou para a história pelas bênçãos da melodia, a segunda pelos delírios do groove.

Andrey, imerso no ambiente acadêmico, seguiu as teorias que respirava todos os dias. “Quando comecei a estudar com Jim Pugh, havia exercícios como trazer entre sete e dez novas composições em formato de blues tradicional para a próxima aula”, conta Andrey. Entraram depois técnicas de criação usando o dodecafonismo e o serialismo, e seguiram as explorações das escalas de cinco notas, a pentatônica, e a de oito, a octatônica Esses pensamentos quase geométricos pairaram no ar o tempo todo e eram tecnicamente seguidos enquanto Andrey criava seus temas. O título do álbum veio daí.

Uma das falas de Jim parece ter mostrado que o caminho estava certo. “Eu estou achando que você está trazendo algo que não é o jazz tradicional, mas que deve estar em você, que deve estar surgindo de onde você veio.” Se o jazz era sua procura desde o início, a avaliação poderia ser frustrante. Mas não. Aquele era um primeiro sinal de que ele estava encontrando um caminho original. “Bem antes de estudar baixo, eu gostava de rock. Sabia, desde o Rock in Rio de 1985, quem eram Iron Maiden, Queen, AC/DC.” Não significa que o resultado seja roqueiro, mas talvez tenha ali uma diluição de ideias do rock adulto dos anos 80. Jazz, disse o professor, não deveria significar uma procura estética, mas um estado de espírito. Bastava lembrar que o arco transpassa desde o New Orleans style de Louis Armstrong até o smooth jazz de George Benson, seguindo por todas as outras décadas.

Um a um, os temas ficaram prontos, com as partituras devidamente escritas e os músicos escolhidos em num ambiente de estudo e investigação. Gente preparada, jovem, branca e pertencente à terceira geração que levou o jazz das ruas para as academias – algo que chegou a ser criticado como se significasse uma espécie de branquinização e cerebralismo do estilo sobretudo a partir dos anos 1990, mas superado assim que os resultados expressivos começaram a surgir. Ao lado de Andrey estão o baterista Andy Wheelock, coordenador da área de percussão da Universidade de Wyoming, o trombonista Ethan Evans, outro aluno de Jim Pugh e finalista da Trombone Jazz JJ Johnson da International Trombone Association, e mais o pianista Kurt Reeder, o saxofonista tenor Robert Brooks e o trompetista Robert Sears.

Os músicos chegaram ao estúdio sem ensaiar. Ajustaram as partituras e seguiram as notas escritas tocando cada tema, em geral, por uma única e definitiva vez. O testemunho da criação que o jazz proporciona a seus instrumentistas pode ter equilibrado uma balança que talvez penderia para o distanciamento se o álbum fosse apenas um produto de experimento técnico. Ao seguir suas teorias geométricas de composição, Andrey poderia ter dado atenção demais à teoria e de menos às emoções. E essa foi de fato uma conversa que o baixista teve com seu mestre – mais uma que vale a qualquer amante do jazz. “Você está virando um belo melodista, foque nisso”, disse Jim Pugh, ao ouvir as primeiras produções. Depois de mais algumas mudanças, Andrey voltou ao professor com o material e ouviu o seguinte: “Ótimo, você seguiu muito bem as regras. Agora, quebre com todas elas faça isso virar música.”

Assim, as músicas foram saindo. Quadrad tem os sopros quentes apontando os caminhos e os solos generosos do piano de Reeder. This is Not a Blues se trata de uma brincadeira com a escala pentatônica que não necessariamente precisa se tornar um blues em sua forma, o que aliás nunca se torna nas mãos de um jazzista Anna and The Moon, feita para uma enfermeira brasileira que cuidou de sua recuperação em um hospital no Brasil depois de um atropelamento em Vitória, é uma balada noturna de melodia linda; e Waterfall for a Cubist Passion, inspirada por um quadro de Pablo Picasso que marcou sua visita ao museu Guggenheim, em Nova York, é de um desenvolvimento alucinante, perdendo-se do caminho de volta em ciclos que não se repetem até tudo retornar com o solo de baixo acústico que se dirige a uma região aguda e difícil, onde Andrey parece bater na trave algumas vezes com seu fraseado de pouca fluência, ao menos, no dia da gravação.

O álbum segue com The Tree of All Inventions, um dos poucos momentos de reminiscência de cultura brasileira. “Eu tive de explicar ao baterista sobre a nossa ciranda”, diz. E, ao fim, termina com o samba Mancada, que tem uma modulação métrica de derrubar qualquer músico nos primeiros compassos. Andrey vai gravar um novo álbum em breve mas, desta vez, invertendo o processo e partindo das ideias que o instrumento trouxer. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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