Tribuna Ribeirão
Cultura

Nicolas Becker conta como foi reproduzir a surdez em filme cotado para o Oscar

Por Ana Lourenço

Da escuta para o silêncio e do silêncio para a escuta. É assim, de maneira geral, que os sons do filme O Som do Silêncio, de Darius Marder, disponível na Amazon Prime, se apresentam para o espectador. Isso porque o desenho de som, de autoria de Nicolas Becker, é um dos mais inovadores feitos recentemente. Não por conta de grandes tecnologias usadas, mas sim pela sua sensibilidade que conecta, ainda mais, com a profunda e emocional narrativa que o filme conta.

Nele, Ruben (Riz Ahmed) é um ex-usuário de heroína e baterista de heavy metal que perde a audição e vai para um retiro de ex-viciados surdos para aprender a língua de sinais e compreender como lidar com a nova vida. “É muito importante em um filme entender todos os seus tópicos e o objetivo do diretor, saber aonde ele quer chegar. Em termos de storytelling e em termos de emoção, ou seja, em como ele quer que as pessoas se sintam com o filme”, reflete o supervisor de som francês Nicolas Becker.

A escolha, no caso, foi que a ficção ganhasse cara de documentário, no qual o espectador vivencia cada momento com o protagonista. Para o produtor musical e engenheiro de gravação e mixagem Ricardo Ponte, a escuta é ativa. “O som abafado faz com que você entenda que está acontecendo alguma coisa sem definição, e fica aquele som grave ocupando um espaço, te incomodando para que você sinta, quase que fisicamente, a dor”, pontua.

Podemos dividir o filme em três partes essenciais: antes da perda de audição de Ruben, durante e após, quando o protagonista faz uma cirurgia de implante coclear. Até mesmo o nome original da obra, Sound of Metal (Som de Metal), foi dividido assim. “O diretor explica que ‘Sound’ é a primeira parte do filme, porque você ainda tem som. A próxima é ‘off’ (trocadilho com ‘desligado’, em inglês; apenas com um ‘f ‘seria a proposição ‘de’), porque não tem som. E então é a parte do implante coclear que é metal”, explica Becker.

Para entender o som metalizado do implante e também o som abafado na cabeça de Ruben durante a perda auditiva, Darius e seu irmão Abraham Mader, corroteirista do filme, conversaram com diversas pessoas que fizeram o implante coclear e testaram diferentes níveis de áudio com audiologistas.

A escolha de Nicolas Becker como supervisor de som também foi certeira. Afinal, por já ter trabalhado em filmes nos quais a ideia de estar dentro do corpo de uma pessoa era muito presente – como 127 Horas (2010), Gravidade (2013) e A Chegada (2016) -, ele entendia bem do assunto.

“Quando você está perdendo a audição, o som continua indo para o seu tecido, para sua cabeça. É muito parecido com quando vamos para debaixo d’água, porque você recebe vibrações e o cérebro transforma isso em som”, explica ele. “Eu não gosto de fazer muitos processos no computador e por conta da minha prática de foley artist (ou sonoplasta, pessoa responsável por reproduzir os efeitos sonoros de um filme), eu passei muito tempo recriando diferentes perspectivas. Então criei microfones, fiz testes, encontrei um estetoscópio e levei para a filmagem para gravar o Riz e fazer esse som interno dele”, conta.

As experiências valeram a pena. No começo de abril, o filme ganhou o prêmio de Melhor Som durante a 74ª cerimônia da Academia Britânica de Artes do Cinema e da Televisão (Bafta) e concorre pelo Oscar, com grandes chances, na mesma categoria – além de outras cinco, incluindo Melhor Filme. “Ele é tecnicamente muito bem feito e muito simples; extremamente simples. Mas é aí que está a genialidade da coisa, porque quando você tem algo simples, esse algo fica exposto porque não tem nada junto ali, não tem nada maquiando”, analisa Ponte.

A justaposição da câmera, que se aproxima e se afasta de Ruben, conforme as mudanças de qualidade e volume do som, faz com que, de fato, entremos na cabeça do protagonista. Porém, essas técnicas não seriam nada sem a excelente performance de Riz Ahmed, que concorre ao Oscar de melhor ator. “Sabíamos que ele tinha que ser super-realista com a atuação, então a gente criou um ponto eletrônico para enviar pra ele um ruído e ele poder diferenciar os níveis de sons. Por isso ele tem essa performance incrível, porque realmente está acontecendo naquele momento”, explica o supervisor de som.

O trabalho em equipe, baseado nas orientações de Mader, de criar uma rede complexa por meio de música, imagem, luzes e movimentos, permitiu que o filme às vezes desse informações e às vezes ocultasse, de maneira orgânica. “Essa foi uma experiência mágica, daquelas que você procura por toda sua vida. Aconteceu comigo quatro ou cinco vezes e essa é a exata razão de por que estou trabalhando, sabe? É a razão pela qual sou apaixonado em fazer filmes por tantos anos. E a coletividade é a razão desses filmes serem tão bons”, reflete Becker.

Academia

Antes do Oscar 2021, Melhor Mixagem de Som e Melhor Edição de Som eram categorias distintas. Hoje, no entanto, se juntam em só uma. Para os entrevistados, a escolha da academia não é um erro. “Acredito que juntar tudo faz sentido, porque isso pode ser até uma valorização para o som, no sentido de que ele é uma coisa grande, única. O processo está todo interligado, não tem como separar”, afirma Ricardo Ponte.

A decisão já era um assunto discutido há muito tempo, tanto na Academia quanto entre editores de som. A proposta foi apresentada pelo Subcomitê de Prêmio de Som do Comitê Executivo de Som da própria Academia. De acordo com o jornal Los Angeles Times, os membros da filial, os governadores Kevin Collier, Teri Dorman e Scott Millan, enviaram um e-mail em 4 de dezembro apontando a frequência com que os dois prêmios foram para o mesmo filme (oito vezes nos 13 anos em que as duas categorias existiam).

Nos últimos dois anos, os ganhadores das categorias foram Bohemian Rhapsody (2019) e Ford vs Ferrari (2020). Dois filmes nos quais a maioria dos sons se baseia em canções da banda Queen (Bohemian Rhapsody) ou em derrapadas de pneus e aceleradas de carros (Ford vs Ferrari). A revolução de O Som do Silêncio é justamente trazer sons reais e romper com a ideia de que o áudio precisa ser um complemento do vídeo. Aqui, o que acontece é quase o contrário; inclusive com o silêncio.

“No filme, o silêncio é importantíssimo porque carrega muita informação, tudo depende do referencial. Destaco dois muito importantes. Antes de ativar o implante, o primeiro silêncio do filme gera o suspense e valoriza o som distorcido que vem em seguida. E depois o silêncio do final (são quase três minutos de completo silêncio), que é propositalmente notável, e faz parte desse desenho de som que aparece no filme inteiro”, comenta Ponte.

A inspiração para esse “silêncio conceitual” veio da peça musical 4’33”, de John Cage, composta de 4 minutos e 33 segundos de silêncio. Nela, o maestro, prestes a começar a reger sua orquestra, para e deixa o silêncio invadir a sala. “Existe tanta tensão, as pessoas da plateia começam a conversar, alguns tossem, então é um jeito de entender que a música também pode ser uma intrusa. O som sempre está lá, a gente só precisa prestar atenção”, explica Becker.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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