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Obras de artistas do subúrbio de São Paulo remetem ao pós-impressionismo

Por Antonio Gonçalves Filho

Na fronteira entre Cidade Tiradentes e os distritos de Guaianases e Itaquera, zona leste da capital, existe um lugar chamado Luau dos Loucos, um oásis no subúrbio de São Paulo. Contudo, não é o tipo de local que seria capaz de atrair, como no passado, pintores da chamada Escola de Barbizon, até mesmo porque Barbizon fica à margem da floresta de Fontainebleau, a poucas horas de Paris. Mas, se Barbizon teve, no século 19, pintores como Corot, Daubigny e Millet, o Luau dos Loucos da Cidade Tiradentes tem Link Museu e Evandro César, entre outros promissores pintores que estão reinventando a paisagem contemporânea. E a palavra reinvenção não é exagerada para esses pintores da Barbizon babilônica.

Se a Barbizon francesa foi marcada pela influência dos pintores ingleses, sobretudo Constable e Turner, a Barbizon paulistana tem como referência o talentoso pintor Rodrigo Andrade, de 59 anos, um dos integrantes do histórico grupo Casa 7 e frequentador de bienais, além de experiente artista gráfico com passagem pelo conceituado Studio of Graphics Arts, em Glasgow, na Escócia. Foi no Luau dos Loucos que Rodrigo conheceu Link Museu (aliás, Diego Jesus Bezerra), com quem acabou realizando trabalhos a quatro mãos – e que serão exibidos futuramente.

Link faz pichação. Como Evandro e outros artistas integrados ao grupo Ali (Arte Livre Itinerante), Link passou a conhecer nomes como Corot e Cézanne por meio das aulas de Rodrigo no Luau dos Loucos. “Evandro nunca tinha ouvido falar em Matisse e ficou deslumbrado quando levei um livro com reproduções de suas obras”, conta Rodrigo Andrade, que, a convite da marchande Marília Razuk, aceitou assinar a curadoria da exposição Um Lugar Nenhum, com trabalhos de sete artistas forjadores da nova paisagem urbana, nem todos moradores de Cidade Tiradentes. A mostra seria aberta na quinta, 4, na Galeria Marília Razuk, mas a pandemia adiou os planos. A exposição, que conta, além dos dois nomes citados, com obras de Alexandre Wagner, Davi Almeida, Joaquim Pinkalski, Maria Andrade e Mariana Serri, deverá ter um viewing room nos próximos dias.

Alguns desses artistas já têm uma carreira consolidada e são ligados a galerias, mas não os garotos de Cidade Tiradentes, que, pela primeira vez, interagem com artistas fora do seu meio social. “Eles não só estão pintando a paisagem contemporânea, como construindo literalmente essa paisagem ao interferirem no próprio ambiente”, observa a pintora Mariana Serri. “De fato, até mesmo o riachinho que vários de nós pintamos em Cidade Tiradentes foi erguido com as próprias mãos por Link Museu”, lembra Rodrigo Andrade.

Link, apesar do nome artístico, nunca entrou num museu. “Só pelo lado de fora, porque às vezes a turma se reunia no vão do Masp”, conta o pintor, filho de um servente de pedreiro que é líder comunitário nato. “Tem muito talento na periferia, só não temos oportunidade”, diz o pintor, que, pela primeira vez, usa tintas e tela – ele fazia só pichações e murais. Suas paisagens são de uma delicadeza guignardiana. Apesar disso, Link acha que não tem muito jeito para a representação. “Tenho dificuldade para reproduzir, gosto mais de criar livremente”, observa o pintor que, aos 35 anos, começa uma nova fase em sua vida. “A pintura me resgatou num período em que eu andava depressivo.”

Seu amigo Evandro César organiza com ele diversas atividades culturais para os jovens da periferia, entre elas um festival literário em que apresentam peças criadas por eles. “O que eu mais gostava na escola eram as aulas de artes”, lembra Evandro, que só cursou o ensino médio. De uma família de sete irmãos (cinco homens e duas mulheres), ele começou na pichação e, ao conhecer Rodrigo Andrade há um ano, sua perspectiva mudou. “Tive de calibrar minha natureza quando vi Cézanne e Matisse”, reconhece o poeta pintor, que vive de bicos como iluminador cênico ou pintando letreiros para estabelecimentos comerciais. Sua paisagem lembra um pouco a de José Antonio da Silva com suas pinceladas enérgicas e espessas, típicas de quem ajudou a criar o ambiente que reproduz.

Há exemplos históricos de artistas que criaram paisagens para depois pintá-las, como Monet. Ou, como os pintores de Barbizon que, começavam a pintar o que viam na natureza e concluíam suas telas no ateliê, como Corot. Mas, no caso paulista, a pintura ao ar livre proposta por Rodrigo Andrade segue muito mais a proposta de acentuar a dissonância entre o observado e os elementos compositivos da obra – as telas de Link são fluidas, indo na direção de Corot, enquanto Evandro César não dissolve as formas naturais, mas acentua suas deformações com pinceladas decisivas, como Cézanne.

O que os pintores de Cidade Tiradentes têm em comum com Barbizon é que, além de pertencer a uma comunidade – ou irmandade, o que parece ser mais o caso – eles se voltam contra o modo burguês de ver o mundo – e a pintura – através da lente decorativa. Os pintores de Barbizon lutaram para preservar a floresta de Fontainebleau, ameaçada de devastação. Os pintores do Luau dos Loucos, também voltados para a ecologia, tentam conter o avanço da especulação imobiliária, que atira os mais pobres para a fronteira do inferno.

“Antes da pandemia, os artistas de Cidade Tiradentes se reuniam todas às terças, às 20 horas, para discutir arte e trocar ideias nesse lugar abandonado chamado Luau dos Loucos”, conta Rodrigo, que passou a levar amigos, como seu assistente Joaquim Pinkalski, outro excelente artista, para pintar na periferia, justo como faziam, no passado, os pintores do grupo Santa Helena (Mário Zanini, Rebolo, Volpi), que se deslocavam até o subúrbio de São Paulo para pintar paisagens.

Há, naturalmente, um descompasso entre o modo de ver essa paisagem de um morador local e um forasteiro. A pintura de Maria Andrade remete aos expressionistas alemães e a de Joaquim Pinkalski revela um olhar culto intermediado pela observação dos mestres modernos. A paisagem quase monocromática de David Almeida traz algo da composição cinematográfica (numa tela que evoca involuntariamente, talvez) a principal cena do clássico Aurora, de Murnau). E, finalmente, Alexandre Wagner cria paisagens surreais de forte apelo sci-fi. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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