Apesar de fortes campanhas de entidades governamentais, de setores relacionados à área da saúde, cientistas e universidades como meio de incentivar a vacinação contra a covid-19 e reforçar medidas de combate ao novo coronavírus, uma parcela significativa da população diz que não vai tomar a vacina, independente do laboratório que a produziu.
Algumas alegações são fundamentadas em desconfiança ao período de produção e testagem das vacinas, outras têm origem às discussões políticas e há aquelas que tomam base informações disseminadas por fake news espalhadas pelas redes sociais. Por outro lado, a comunidade científica contesta e se mostra preocupada.
Apesar de estar no grupo prioritário para tomar a vacina, o policial militar da reserva e músico, Roberto Sebastião Bueno, ou Bueno Cantor, como é conhecido, de 73 anos, disse que não vai entrar na fila da vacinação.
Bueno alega que tem tomado medidas preventivas. “Tomo ivermectina desde março, tomo comprimidos manipulados de vitamina D, tomo muito sol. Pra mim esta vacina ainda é um experimento, ‘tô’ fora por enquanto”. O músico diz ainda que leva uma vida saudável. “Uso muito própolis, faço academia 5 vezes por semana”.
Sobre a ivermectina, é necessário afirmar, que é um medicamento utilizado no combate e prevenção a parasitas. Em comunicado oficial, o laboratório fabricante do medicamento afirmou que não existem evidências sobre a eficácia contra a covid-19. Em junho passado a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu uma nota alertando contra o uso do medicamento enquanto não surgirem resultados de testes em humanos. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regula os medicamentos, seguiu a mesma linha.
Mesmo com os alertas, o medicamento é considerado por muitos que são contra a vacina, como uma espécie de ‘bala de prata’ contra a covid-19.
A analista em administração Johara Ferreira, de 36 anos, apesar de não estar na relação do público prioritário da vacina também é contra. Ela lista três pontos que a fazem questionar a vacina: “os desenvolvedores da vacina exigindo isenção de responsabilidade sobre qualquer efeito colateral; notícias com seringas vazias ou líquidos não injetados, isso demonstra como somos vulneráveis e manipuláveis; e (a vacina) foi desenvolvida muito rápido e causa uma certa desconfiança sobre o que pode causar futuramente”.
A falsa vacinação a que se referiu Johara aconteceu em Macéio (AL) no final de janeiro. Uma técnica de enfermagem foi afastada pela rede municipal de saúde da prefeitura daquela cidade após ter simulado que aplicou a vacina contra a covid-19 em uma idosa de 97 anos. A idosa teve o braço esquerdo furado pela agulha, mas o líquido da vacina não foi injetado. Um vídeo feito por uma cuidadora da idosa mostrou que o imunizante não foi aplicado. Além do afastamento da profissional de saúde, uma investigação foi aberta para apurar o ocorrido.
O fotógrafo e encarregado administrativo Lucas Barretos, 30 anos, diz que não é contra a vacina, independente do laboratório fabricante, mas que não vai tomar. “Também não sou contra a quem quer tomar, quem quiser que tome, como é no caso da gripe”, diz. Lucas fala que o coronavírus existe há anos e continuará existindo mesmo após a vacinação, assim como outras doenças.
“Não dou atenção às notícias que circulam pelas redes sociais. Não é isso. Mas a gente perde a credibilidade em quem passa as orientações. Situações que aconteceram durante o ano que nos deixam confusos. São as atitudes dos governantes. Tem gente que falava que não era pra aglomerar e aglomerava (como nas campanhas eleitorais)”, exemplifica.
“É mais ou menos assim. Eu te falo que você não pode entrar na minha piscina porque tem ácido, dez minutos depois eu entro, qual o nível de confiabilidade que você terá em mim? E isso acontece. Como acreditar nesse pessoal?”, indaga, apontando uma politização da doença.
“Dessas 210 mil pessoas que morreram eu conheci 3. Dessas três, duas tiveram enfarto e a outra estava em estado terminal. Não estou falando das outras, mas das três que conheci, não dá pra cravar que foi a covid”, finaliza.
As questões elencadas por Lucas são parte de um artigo do doutor em Química pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) Gustavo Pagotto. “Este fenômeno pode ser explicado através da agnotologia, que é o estudo da propagação intencional da desinformação para fins políticos e comerciais para dar legitimidade a uma determinada agenda de poder ou tirar o foco de algo”, diz. “Ou seja, quando o líder de um país faz declarações sem embasamento científico a respeito da pandemia e da vacinação e seus efeitos, sua estratégia política fica evidente e, naturalmente, parte da população se sente confusa e não sabe como agir”, completa.
Pagotto ressalta, no entanto, que vidas humanas valem mais do que disputas de poder. “A politização do vírus e da vacina coloca toda a população brasileira em meio a um cabo de guerra ideológico que vem fazendo mais vítimas a cada dia. É preciso refutar o negacionismo científico como política de Estado, combatendo com veemência discursos que criam caos, desinformação e medo”.
“Quando é possível observar tão nitidamente quanto agora – com mais de 210 mil vidas perdidas – os resultados catastróficos gerados pela desinformação e inépcia, também fica evidente o quanto a ciência e tecnologia são fundamentais. Confie na ciência, ela salva vidas”, finaliza.
Queda nas vacinações
No Brasil, em 2020, pela primeira vez, nenhuma das vacinas básicas teve meta alcançada. Ao longo dos últimos anos, o país registrou queda de cobertura vacinal do calendário básico de imunização.
Sobre a intenção de vacinação contra a covid-19, uma pesquisa Datafolha, realizada em dezembro, mostrou que 22% não queriam ser vacinados contra a covid-19 e 5% não sabiam se iam ou não tomar a imunização.
Europa – Na França, uma pesquisa realizada pelo instituto Ipsos Global Advisor em parceria como Fórum Econômico Mundial, mostra que 60% não desejam receber as doses das vacinas contra a covid-19. O principal motivo apontado pelos entrevistados é o medo de possíveis efeitos colaterais.
Na África do Sul o índice de rejeição é de 53% da população e na Rússia de 43%. Já no Reino Unido, 77% querem a vacina e na China 80% disseram que vão tomar. Nos Estados Unidos, após uma grande campanha de vacinação, a aceitação chegou a 69%.
A ‘Revolta da Vacina’
A discussão sobre vacinar ou não, não é novidade. No Brasil, em 1904, ocorreu a ‘Revolta da Vacina’, no Rio de Janeiro, então capital do país.
O estopim da revolta foi a publicação de um projeto de regulamentação da aplicação da vacina obrigatória (contra varíola) no jornal A Notícia, em 9 de janeiro de 1904. O projeto exigia comprovantes de vacinação para a realização de matrículas nas escolas, para obtenção de empregos, viagens, hospedagens e casamentos.
Previa-se também o pagamento de multas para quem resistisse à vacinação. Quando a proposta vazou para a imprensa, o povo indignado e contrariado iniciou uma série de conflitos e manifestações que se estenderam por cerca de uma semana.
Embora a vacinação obrigatória tenha sido o deflagrador da revolta, logo os protestos passaram a se dirigir aos serviços públicos em geral e aos representantes do governo, em especial contra as forças repressivas.
O estado de sítio e a suspensão da vacinação obrigatória chegaram a ser decretadas, mas com a repressão sistemática e extinta a causa deflagradora, o movimento foi refluindo.
Na repressão que se seguiu à revolta, as forças policiais prenderam uma série de suspeitos e indivíduos considerados desordeiros, tivessem eles relação com a revolta ou não. O saldo total foi de 945 pessoas presas na Ilha das Cobras, 30 mortos, 110 feridos e 461 deportados para o estado do Acre.
Rui Barbosa x Oswaldo Cruz – A vacinação contra varíola, em 1904, de certa maneira colocou dois grandes nomes da história nacional em lados diferentes: o cientista, médico, bacteriologista, epidemiologista e sanitarista brasileiro Oswaldo Cruz e o jurista, advogado, político, diplomata, escritor, filólogo, jornalista, tradutor e orador, Ruy Barbosa.
Oswaldo Cruz foi o responsável pelas campanhas de vacinação e de saneamento básico. Ruy Barbosa foi contrário à lei de obrigatoriedade na vacinação, por entender que violava os direitos individuais do cidadão. Anos mais tarde, reconheceu o valor das ideias de Cruz.