Por Rodrigo Fonseca, especial para o Estadão
Diante do fenômeno em que a série Lupin se transformou no streaming, tornando-se um dos títulos de maior audiência na Netflix do dia 8 de janeiro para cá, todos os filmes com Omar Sy como protagonista entraram em alta, mobilizando plataformas digitais, circuitos exibidores e eventos como o Rendez-Vous Avec Le Cinéma Français, no qual ele virou “a” atração. No menu desse fórum promocional do audiovisual francófono – realizado outrora presencialmente em Paris e, este ano, promovido online – a presença dele em Police transformou esse thriller psicológico num ímã para distribuidores e exibidores de todo o mundo.
Sy – astro nascido em Trappes, Yvelines, a uma hora de Paris, cuja mãe veio da Mauritânia e o pai veio do Senegal – protagoniza esse ensaio sobre conduta ética ao lado de Virginie Efira e Grégory Gadebois, sob a direção de Anne Fontaine. Exibido no encerramento do Festival de Berlim de 2020, em abarrotadas projeções, o filme, ainda inédito no Brasil, parte de um romance de Hugo Boris para estudar os dilemas de três policiais empenhados em levar um refugiado (Payman Maadi, de A Separação) ao aeroporto Charles De Gaulle. A tarefa deles é deportá-lo para a pátria onde ele sofreu toda a sorte de mazelas
“O que me levou a essa história foi a possibilidade de discutir o que significa para uma pessoa negra vestir uma farda num país como a França e ter como sua responsabilidade deportar um refugiado”, disse Sy na Berlinale, onde foi ovacionado por seu desempenho em um papel sem qualquer conexão com o perfil bem-humorado que o consagrou em Intocáveis, há dez anos.
À época, a história de um desempregado cheio das malandragens que se torna cuidador de um milionário tetraplégico vendeu cerca de 20 milhões de ingressos só na França, inspirando remakes na Argentina e nos EUA, transformando Sy em uma promessa de bilheterias robustas. Em sua estreia comercial em Paris, em setembro, Police arrastou cerca de 120 pagantes aos cinemas, atraindo-os com uma incursão do astro (que completou 43 anos no dia 20 de janeiro) na seara da exclusão política. “Embora seja tensa, essa história que rodei a partir do livro de Boris não é um filme de ação e, sim, um thriller emocional sobre a dimensão opressora de um uniforme policial, com uma reflexão atenta sobre a misoginia naquele universo”, diz a diretora Anne Fontaine ao Estadão, em entrevista concedida via zoom, na última quinta-feira, durante o sucesso de Police no 23.º Rendez-Vous Avec Le Cinéma Français. “Durante 45 minutos, eu fecho a câmera em três bons atores em um carro, com eles discutindo, a partir de uma perspectiva europeia, a extradição de alguém que sofreu todas as formas de agressão política. Só por esse dispositivo narrativo, você já pode entender que não estamos lidando com a cartilha do cinema policial clássico. É um filme que precisa da palavra e de grandes atuações.”
Realizadora de Coco Antes de Channel (2009) e Marvin (2017), Anne cria uma dialética de sentimentos que esculpe múltiplas dimensões em seus personagens. Logo no início, vemos a policial Virginie (papel de Efira) viver uma relação abusiva em seu desgastado casamento. Ela se levanta antes da hora, dá atenção ao filho e sai para patrulhar as ruas tendo dentro de si um peso, a ser contextualizado com o colega Aristide (Sy). Os dois compartilham mais do que o senso de proteger e servir: existe um desejo mal resolvido entre eles, que vai mudar a trama do longa. Mas, até lá, eles têm compromissos que não passam por suas vidas afetivas, ainda que tangenciem suas convicções. “Tudo neste filme passa pelo corpo”, disse Efira em Berlim.
Em diligência, Virginie e Aristide são acompanhados por um terceiro policial, Erik (Gadebois), um alcoólatra que cheira copos molhados de conhaque para ficar em paz com seu vício. Erik é um satélite aparentemente periférico aos desejos que se fortalecem, mas também se repelem, entre Virginie e Aristide, testados em uma missão inicial contra um agressor de mulheres. É um teste inicial para um exame bem mais difícil: levar um imigrante expatriado (papel de Maadi) para pegar um avião. “A jornada desses três é um jogo de máscaras que disfarça uma série de preconceitos culturais na França”, disse Sy na Berlinale. “Muitas camadas sobre choques cultuais são reveladas conforme a relação desses policiais no carro se aprofunda”.
Para encontrar a linha narrativa para a direção de seu elenco, Anne pesquisou numa delegacia. “Descobri que muitas mulheres policiais optam por trabalho de escritório por conta do sexismo que sofrem. E o que me atraiu nessa história, quando li o livro de Hugo Boris, foi a maneira como a personagem de Virginie encara as fragilidades morais de seu ofício”, diz a cineasta, que hoje finaliza um novo longa: a comédia política Les Présidents, com Gadebois e Jean Dujardin, centrado no governo de Sarkozy. “Meu cinema é atento ao confronto de alteridades, à importância de se olhar o outro, mesmo quando esse usa um distintivo.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.