Miguel Ángel Fernández Argüello, professor de literatura e semiótica na Universidad Nacional de Asunción e na Universidad del Norte, em artigo publicado em 2008, sobre poetas paraguaios da geração de Rafael Barrett, Carmen Soler, Augusto Roa Bastos e Josefina Plá, destaca algumas omissões, equívocos e ocultações por ele observadas na história da literatura paraguaia contemporânea. Barrett (1876-1910), espanhol, tendo chegado ao Paraguai como correspondente de guerra de um periódico argentino, desenvolveu a maior parte de sua produção literária no Paraguai, tornando-se uma figura importante deste país durante o século XX. No entanto, viu apenas uma pequena parte de sua produção jornalística literária reunida em volume, já que morreu seis anos após sua chegada ao país onde foi feito homem –de acordo com suas próprias palavras-, ou seja, onde tomou consciência da realidade social e lançou as bases da modernidade paraguaia. No entanto, ainda hoje, segundo Argüello, seu nome raramente é mencionado em manuais de literatura. Omissão que necessita ser corrigida, pois Barrett tornou-se uma figura capital para a consciência revolucionária americana, para o pensamento social e para a literatura dos países hispano-americanos. Morto aos 34 anos, o contato com a realidade paraguaia mudou sua vida, dando sentido ao seu trabalho intelectual.
Um exemplo de sua produção? “-La vida es un aire sutil, invisible y veloz, cuyos remolinos agitan un instante el polvo que duerme em los rincones. El inmortal torbellino pasa, torna a la pura atmósfera, torna a ser invisible, y el polvo se desploma inerte en su rincón. Los sabios no ven más que el polvo: palpan minuciosamente los cadáveres”. Tradução: “A vida é um ar sutil, invisível e rápido, cujos redemoinhos agitam por um momento a poeira que dorme nos cantos. O redemoinho imortal passa, retorna à pura atmosfera, torna-se invisível, e a poeira cai inerte em seu canto. Os sábios vêem apenas poeira: eles sentem cuidadosamente os cadáveres”.
Não tendo seus artigos passados despercebidos, o autor era admirado, tinha seu talento era reconhecido, assim como sua coragem pessoal. Mas, segundo Argüello, o mesmo incomodou profundamente a intelectualidade paraguaia, especialmente a partir do momento em que assumiu uma postura crítica radical contra a injustiça da “ordem estabelecida” e denunciou a exploração de trabalhadores rurais, bem como, a extrema miséria em que estes e os camponeses viviam. A imprensa foi o meio de expressão de suas preocupações artísticas e humanas. Nela, seus artigos, ensaios, narrações e diálogos alcançaram o veio estético e estilístico que o tornou uma das grandes figuras da literatura hispano-americana do início do século XX. Ainda segundo Argüello, o pensamento crítico e criador de Barrett vai muito além do pensamento ideológico anarquista: representa horizontes vastos enquanto propõe implicitamente uma epistemologia liberal radical, com eles alcançando notável atualidade e vitalidade em seus escritos e modo de pensar. Sua palavra, portanto, alcançando, cada vez mais, grande valor literário.
Por sua vez, Heriberto Fernandez, destacada figura da poesia na década de 1920 (pós-modernismo paraguaio), apresenta, em seus últimos poemas, orientações originais que o tornam o primeiro poeta paraguaio a tentar romper o logocentrismo poético de então, ou seja, com a valorização da palavra -logos- e de seu sentido inerente, ao mesmo tempo em que apresenta o sentimento de um mundo impregnado pela angústia dos anos de crise histórica e existencial até então sofridos pelo povo paraguaio. Um exemplo? No poema SONETOS A LA HERMANA (VI): temos “Yo no te amo, mar, a mis montañas yo amo. Rutina, ideas hechas. Las disfrazan los árboles. Juventud y vejez, cuatro veces por año. –Mar poliforme y vario, mar innumerable–. ¿Por qué no te amo, mar, por qué no te amo? Voz de acento yodado, de cambiar incesante. Eres verde y azul, eres oscuro, eres claro. Inquietud loca de las almas grandes. Silencio claro, bajo, arboleda espesa. Placer de descansar en la fresca ladera. Rutina, ideas hechas. Quietud en la montaña que en esta siesta intensa nos servirá de almohada”. Traduzindo: “Eu não te amo, mar, amo minhas montanhas. Rotina, ideias feitas. As árvores o disfarçam. Jovens e idosos, quatro vezes por ano. Mar múltiplo e variado, mar incontável. Por que não te amo, mar, por que não te amo? Voz de sotaque iodado, de mudança incessante. Você é verde e azul, você é escuro, você é claro. Inquieta inquietação de grandes almas. Silêncio claro, bosque baixo e denso. O prazer de descansar na fresca encosta. Rotina, ideias feitas. Sossego nas montanhas que neste intenso cochilo servirá de travesseiro”. Resumir seu trabalho a mera expressão de poeta juvenil é algo que, segundo Argüello, precisa ser corrigido.
Neste contexto, Carmen Soler apresenta-se como outro lamentável caso de exclusão na história literária paraguaia. Trabalhando no estilo poético social e político, Soler também escreveu poemas de ressonância existencial de elevada qualidade estética. Não chegando a ser poeta profissional, dedicou sua vida a lutar pelo povo e a combater a ditadura. Várias vezes presa e torturada, acabou no exílio, falecendo três anos antes da queda ditatorial no Paraguai. Seus poemas, recolhidos em dois livros póstumos, “En la tempestade” (1986) e “La alondra berida” (1995), apresentam economia verbal e intensa experiência de vida. Um exemplo? BANDOS: “Se prohíbe: al hambre comer, a la boca hablar, al oído oir, a la sed beber, al fuego calentar, al sueño dormir, al miedo correr, al frío tiritar, a la alegría reir, al amor querer, al poeta cantar, al herido gemir, a la primavera florecer, a la pólvora explotar. Después, los fusilaron por no cumplir”. Traduzindo: É proibido: à fome comer; à boca falar, ao ouvido ouvir, à sede beber, ao fogo aquecer, ao sono dormir, ao medo correr, ao frio tremer, à alegria rir, ao amor querer, ao poeta cantar, ao ferido gemer, à primavera florescer, à pólvora explodir. Depois os fuzilaram por não cumprir”. Outro exemplo? LIMITADA: Leí que en los últimos 30 años hubo más de 100 guerras “limitadas”, ¡Vaya! ¿Limitadas? Los que mueren, díganme, a ver, ¿tienen una muerte limitada?”. Traduzindo: “Eu li que nos últimos 30 anos houve mais de 100 guerras “limitadas”, Uau! Limitadas? Aqueles que morreram, digam-me, vamos ver, vocês tiveram uma morte limitada?”.
Nas palavras de Arqüello, “não é impróprio mostrar manipulações ideológicas e mal-entendidos conceituais que dificultam uma avaliação mais completa da produção estética, assumindo a complexidade dos fatores que nela intervêm. Compreensão de o fato literário adquirir assim uma nova dimensão, não privado do rigor da crítica e atento aos múltiplos componentes da prática artística”.