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Cultura

Em diário, escritor Felipe Franco Munhoz conta como foi ficar 313 dias isolado

Por Redação, O Estado de S.Paulo

O escritor Felipe Franco Munhoz, de 30 anos, seguiu à risca o isolamento social: passou 313 dias em seu apartamento, em São Paulo. Por motivos de trabalho, no entanto, precisou sair, na quinta, 21. Aqui, Munhoz relata como foi o longo período vivido entre quatro paredes, ao lado da mulher, Eliane, e do enteado, Eduardo.

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21/1/2021. Dia 313. Não coloco os pés para fora do apartamento em que moro desde o dia 14 de março de 2020, quando participei do evento literário Segundas Intenções, na Biblioteca Parque Villa-Lobos: conversando com a escritora Aline Bei e o jornalista Alexandre Agabiti Fernandez, tridimensionais. Corta. 313 dias no segundo andar. Toda a família confinada.

Penso em isolamentos e em esperas – voluntárias, involuntárias. Penso na poeta Emily Dickinson. E penso em astronautas. Em tribos indígenas. Em iglus. E no veloz desenvolvimento da vacina E na enfermeira Monica Calazans. E penso em Pedro Pedreiro.

E penso em Cotidiano. Todo dia, tudo igual? Verbos no infinitivo: acordar, tomar café, sentir aflições, ligar o computador, trabalhar, sentir faltas, almoçar, trabalhar, ler, jantar, ler, sentir angústias, dormir. Sonhar?

Flashback (Ou: fita cassete rebobinada, com auxílio de lápis).

Antes de enveredar para a profissão de escritor, fui um adolescente que compunha canções – que pretendia gravar essas canções. Uma delas, com letra ainda embrionária, tinha o título de Pegadas, Letras e Linhas. Mas não era o momento do estúdio. Optei pela espera. Faz 15 anos.

21/1/2021. O som da chuva. Trovões. Penso em 4’33”, de John Cage: quantos quatro minutos e trinta e três segundos caberiam em 313 dias?

Abril e maio de 2020. Arredondo o texto Parêntesis. Uma cena que se repete ao infinito. Que, circular, simula um risco em um disco de vinil.

Um risco em um disco de vinil. Define-se um plano para que as canções sejam gravadas. A distância. E a primeira vez no estúdio: não será no estúdio. Sou apresentado, por Bruno Batista ao galês Paul Ralphes. Vídeochamada. Envio para ele algumas composições. Ralphes sugere que iniciemos com (a burilada, reburilada, reescrita ao longo dos anos) Pegadas, Letras e Linhas. Onde é o estúdio? Quem são os músicos?

21/1/2021. Escrevo esta entrada de diário com o receio da porta. Penso em O Anjo Exterminador, de Luís Buñuel. Caso, à maneira dos personagens do cineasta surrealista, eu não consiga ultrapassar a soleira: mais quantos dias? Mais 15 anos?

Julho de 2020. A trilha instrumental da canção escolhida aporta. Pronta. Os músicos – não sei os nomes. Os músicos – espectros? Essenciais no que guardei e afinei por uma década e meia. Ralphes diz: “Falta você colocar a voz definitiva, em um estúdio”.

21/1/2021. Escrevo esta entrada de diário com o ritmo do confinamento. Com as frases curtas. Com as frases confinadas. Pontos bruscos. Pontos ríspidos. Pesados. Pontos.

Verbos no infinitivo: espreguiçar, escovar os dentes, colocar o pó de café na cafeteira, sentir aflições, trabalhar, sentir faltas, cozinhar arroz, tomar banho, trabalhar, sentir a impressão de um extenso período contínuo, ler, afundar a cabeça no travesseiro. Sonhar?

Novembro de 2020. É registrada uma performance audiovisual de Parêntesis, com a atriz Natália Lage e o pianista André Mehmari. Cada um em sua casa. Luzes. Câmeras. Telas contracenam.

Dezembro de 2020. Falta colocar a voz definitiva. Cogito: a rua. São Paulo. Do apartamento, de seu interno, conheço, agora, cada fresta. Não sei se reconheço qualquer externo. Jamais trajei máscara.

Janeiro de 2021. Marco a gravação da voz com Mehmari – em seu estúdio, Monteverdi, incrustado na Serra da Cantareira. Distanciamento social por natureza. E a primeira vez (da vida) no estúdio será, então, a primeira vez em que (desde o início da pandemia) sairei do apartamento.

21/1/2021. Buñuel superado. Os pés para fora. Estou de sapatos. Máscara, ofego na máscara. Os medos do invisível. Olhos nos olhos (e lentes) de um desconhecido: Taba Benedicto, o fotógrafo do Estadão. Músculos e tendões reagindo com ferrugem. Carteira de motorista? Quem figura na foto? Nervos. Avenidas. O estúdio é verdadeiro. Feito madeleine proustiana, o primeiro verso: “Um café dissipa o véu Manhã gelada”.Tudo foi um parêntesis? É um parêntesis? Tudo parece de repente. A voz definitiva de Pegadas, Letras e Linhas: gravada. Retorno para o apartamento em que moro. E uma porta que comecei a abrir na adolescência: finalmente escancarada. E por essa porta, comigo, você poderá entrar.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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