Tribuna Ribeirão
Cultura

Mundo escolar visto por meio de uma câmera

Por Luiz Zanin Oricchio

Uma escola pode ser um ótimo ponto de observação social para cineastas. Haja vista o sucesso de filmes como o francês Entre os Muros da Escola, de Laurent Cantet, e o cubano Numa Escola em Havana, de Ernesto Daranas. João Jardim, que atua tanto no documentário como na ficção, já havia feito Pro Dia Nascer Feliz, radiografia em bloco do sistema educacional brasileiro, com seus contrastes e confrontos. Com Atravessa a Vida, volta ao tema, mas com foco bem mais concentrado. Debruça-se sobre uma única instituição, o Colégio Milton Dortas, na cidade de Simão Dias, Estado de Sergipe.

Jardim passou três meses convivendo com alunos, professores, funcionários e diretores. Usou poucas entrevistas e fez um filme mais de observação, tipo de postura que se convencionou chamar de “cinema direto”, que procura interferir o mínimo possível na rotina daquilo que registra. Claro que, no limite, isso é uma utopia, pois a simples presença de uma e uma equipe altera o campo que registra. O real documentado já chega modificado por essa inevitável interferência. Mas existe uma verdade que há de ser buscada apesar de tudo.

Nessa escola pública de cerca de mil estudantes, o cineasta apura ainda mais seu foco e concentra-se numa única turma do terceiro ano do ensino médio. Esta vive a situação tensa de se preparar para o Enem, prova unificada que pode garantir vaga no ensino superior. Ou, em caso desfavorável, fazer os reprovados “perder um ano de vida”, como se diz.

Portanto, há muitas tensões em jogo. A expectativa da prova decisiva para o futuro profissional é apenas uma delas. Há também os problemas familiares, que interferem no desempenho escolar e na própria estabilidade emocional dos jovens. Pesa o sentimento da despedida iminente da turma, com a passagem para uma nova fase da vida sem a proteção do ambiente conhecido. E, se não fosse pouco, o Brasil ainda vive o ano de 2018, com as eleições presidenciais mais polarizadas da história recente – o que se reflete diretamente sobre a vida de jovens com idade para votar. E também aptos a pensar politicamente.

A escola é lugar de transmissão do conhecimento, mas também concentração de tensões em meio ao processo de amadurecimento. E, portanto, é ambiente propício para debate, quando as ideias e valores se formam, se alteram ou se consolidam.

Esse debate será tão mais produtivo quanto mais professores e alunos possam abordar temas polêmicos. Nesse sentido, a escola escolhida parece exemplar. Respira-se nela um ar de liberdade. Os alunos estudam física, matemática e química, e nas aulas de “humanas” são estimulados a discutir pontos polêmicos como a pena de morte, e delicados como aborto e suicídio.

O quadro docente é jovem e parece muito empenhado. Rapazes e moças exibem aquela curiosidade comovente que faz da penosa profissão do magistério algo fascinante. Quem já deu aulas sabe que o interesse dos alunos muitas vezes compensa o baixo salário e o desprestígio social de profissão tão nobre como a dos educadores.

Nem tudo são flores. Um professor progressista talvez se surpreenda que uma classe de alunos e alunas inteligentes se manifeste, por exemplo, a favor da pena de morte. Nesse ponto se vê que a educação pode ser algo mais que mera transmissão de informações. Deve, também, ser ambiente de debate de ideias contrastantes e desconstrução de preconceitos e chavões.

O estilo de filmagem é sensível. A câmera registra discretamente as atividades da escola e os diálogos dos personagens. Fixa-se em frente, parada, respeitosa nas raras entrevistas. É como um olhar acolhedor e compreensivo com as histórias que “vê e ouve”. Curioso: ouvem-se, na maioria, casos de abandono do lar por figuras paternas. Dramas familiares que tornam ainda mais instável a situação de um jovem forçado a uma decisiva e talvez precoce escolha profissional.

Há também humor, irreverência, contestação. E discurso político, como o da jovem que, em meio à emoção, encontra forças para se afirmar como a primeira pessoa de uma família pobre – e preta – prestes a se tornar uma universitária. Ela sabe que chegou lá por esforço próprio. Mas que talvez não chegasse, caso tivesse encontrado um contexto desfavorável.

À aflição dos alunos corresponde a angústia de alguns professores, que temem um resultado desfavorável dos estudantes no Enem. O fato de a escola estar, no momento da filmagem, sofrendo uma reforma, empresta ao filme uma metáfora inesperada. A da construção, com sua necessidade e seus incômodos – como é também a educação.

O filme desperta a emoção e estimula o público a refletir. Vemos lá, reafirmado, um Brasil que, em meio a condições desfavoráveis, apesar de tudo ainda teima em se construir. Ainda era 2018, não havia ainda um governo disruptivo instalado no poder, não havia pandemia, nem a educação e cultura ainda eram atacadas, como se inimigas fossem. Mas se o País ainda tem algum futuro, este pode ser encontrado em jovens como aqueles registrados em seu rito de passagem.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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