Tribuna Ribeirão
Cultura

Documentário reconstrói trajetória de Gabriel García Márquez

Gabo: a Criação de Ga­briel García Márquez, de Jus­tin Webster (disponível na Netflix), pode ter um título meio óbvio. Mas descreve, à perfeição, a proposta do Jus­tin Webster, uma tentativa de entender a estranha história do menino nascido na pobre­za de um lugarejo colombia­no e que se torna um gênio da literatura.

Gabriel nasce em 1927, em Aracataca, o mais velho de 11 irmãos. Foi criado pelos avós, pois os pais haviam se mudado para Barranquilla. Em dificul­dades financeiras, não pude­ram levar o filho. Gabo cresceu ouvindo as histórias de guerra do avô e as narrativas místicas da avó. Como sabem os leito­res, são esses relatos as fontes de construção de seu roman­ce mais famoso, Cem Anos de Solidão. E de outros livros também, como Ninguém Es­creve ao Coronel, que Gabo, contrariando a crítica, consi­dera sua obra-prima.

Se o realismo fantástico define Cem Anos de Solidão, em que a Aracataca dos avós se transforma na mítica Macon­do, a realidade comparece com mais força quando Gabo de­seja falar de seus pais. É assim no comovente O Amor nos Tempos do Cólera. “Quando falo do amor entre os dois, não há nenhuma ficção. Eu procu­ro apenas descrever os fatos como eles se passaram e como eles mesmos me contaram, de­pois de muita hesitação”, diz o escritor em uma das inúmeras entrevistas incluídas no filme.

Colhendo depoimentos en­tre contemporâneos, amigos, ex-mulheres e conhecidos do escritor, Webster refaz os tra­ços dessa trajetória acidentada e multifacetada. Gabo iniciou a vida como jornalista em Carta­gena das Índias e depois se mu­dou para Bogotá em busca de trabalho. Foi um grande repór­ter e nunca abandonou de fato o métier. Pelo contrário, chama­va o jornalismo de “a profissão mais linda do mundo”. Traba­lhou na cubana Prensa Latina, foi correspondente na Europa e, mais tarde, já consagrado, criou a Fundação do Novo Jornalismo Latino-americano para estimu­lar e formar novos talentos.

O vício do jornalismo estava em seu coração. Porém, dividido com a literatura. Quando conse­guiu fundir a objetividade jorna­lística com os tons narrativos da avó Tranquilina e do avô Nicolás Márquez Mejía, deu forma ao realismo mágico, pedra de toque do chamado boom da literatura latino-americana.

Um dos principais depoen­tes do livro é Gerald Martin, bri­tânico, autor da biografia con­siderada definitiva do escritor – Gabriel García Márquez – Uma Vida (Ediouro). Martin ajuda a retraçar os pontos principais dessa vida agitada, da Aracataca natal aos périplos pelo mundo. Do ativismo literário ao enga­jamento político, com a polê­mica amizade com Fidel Cas­tro e seu apoio incondicional a Cuba, mesmo no clima pesado da Guerra Fria.

Se os depoimentos ajudam a reconstruir essa personalida­de multifacetada, e por vezes contraditória, seus pontos mais luminosos vêm das palavras do próprio escritor. Gabo fala coi­sas sérias, mas temperadas por seu conhecido senso de humor. Por exemplo, conta como ele, “costeño”, do multicolorido Ca­ribe, estranhou a capital Bogotá quando para lá se mudou. “Fazia frio, os homens todos vestidos de preto, da cabeça aos pés, e ne­nhuma mulher na rua!”, espan­ta-se. Cheio de graça, também, quando recebe o Nobel e vai a Estocolmo recebê-lo. A uma repórter que pergunta se aquele é o dia mais importante de sua vida, responde: “Que nada. O dia mais importante da minha vida foi aquele em que nasci”.

Mais tensos são os momen­tos em que se relembram os pro­blemas com a revolução cubana. Escritores, mesmo amigos de Cuba, censuravam a persegui­ção a intelectuais como Heberto Padilla, e encaminharam uma carta de protesto a Fidel. Todos assinaram, mas Gabo não foi localizado. Assim, seu amigo de juventude, o também escri­tor Plínio Apuleyo Mendoza, resolveu assinar em seu nome. “Afinal, eram nossos princí­pios comuns sobre liberdade de expressão que estavam em jogo”, diz. Mas García Már­quez o desautorizou.

Ele mesmo se justifica dizen­do que, ao manter aberto o canal de diálogo com Fidel, poderia ajudar muito mais os persegui­dos políticos do que assinando manifestos contra o regime. São os bastidores da política, menos nobres que o ofício de escrever, mas centrais para uma gera­ção que pensava politicamente, como aquela do boom literário latino-americano.

O fato é que Gabo sentia fascínio pelas figuras de po­der, dizem os amigos, bastan­do citar como exemplo outro de seus livros, O Outono do Patriarca. E, de fato, ele tinha amigos não apenas entre os revolucionários de Cuba, mas, surpreendentemente, privava da intimidade de Bill Clinton. Este aparece várias vezes no documentário. Diz-se fã da literatura de Gabo e fascina­do por Cem Anos de Solidão. Clinton conta que, ao receber um exemplar de Notícias de Um Sequestro, cancelou todos os compromissos da tarde para devorar o livro na privacidade do Salão Oval da Casa Branca.

Essa proximidade entre poderosos deixou Gabo a um passo do que seria uma façanha, levantar o bloqueio econômi­co dos Estados Unidos a Cuba. Era ele quem servia de interme­diário entre Fidel e Clinton. O próprio ex-presidente norte-a­mericano admite que o fim do bloqueio esteve por um fio. Mas, por fim, o Congresso interveio e nada de prático pôde ser feito. As tramas da política às vezes são mais enredadas que as do realismo fantástico.

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