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Os juízos de Deus

Na História da Humanidade há episódios terríveis, in­compreensíveis para nós face a nossa realidade atual, mas que mostram o caminho tortuoso que percorremos até chegarmos ao estágio atual, de respeito aos direitos humanos e a cada um de nós. Bem verdade, várias vezes estas conquistas são desprezadas, mas, em geral, o mundo goza de uma proteção social que pode ser considerada muito boa. O direito, des­de sua gestação, foi e é o instrumento de organização social que nos permite viver protegidos em sociedade. Entretanto, mesmo o curso do Direito, refletindo o estado atual de cada época, contém coisas curiosas e hoje absurdas. Uma delas são as ordálias ou Juízos de Deus.

As ordálias perdem-se no tempo. Trata-se de uma série de provas onde, usando sempre um elemento da natureza, pede­-se a interferência de Deus na solução de pendências huma­nas. A sua primeira citação encontra-se no Livro Números, da Bíblia, onde se prescreve que a mulher acusada de adulté­rio deve ingerir água contaminada, que lhe é ministrada pelos juízes. Se inocente, nada sentirá e será absolvida. Se passar mal, Deus, em sua onipresença assim está mostrando aos ho­mens sua culpa. Elas se encontram também nos mais antigos códigos, como o de Ur-Nammu, editado circa 2040 a.C, uma série de tabuinhas em sumério com normas de convivência. E no Código de Hamurabi, rei da Babilônia que, baseado na Lei de Talião (Olho por olho, dente por dente) estabelece, circa 1800 a.C seu uso como prova.

Mas, as ordálias se consolidam como prova de Direito na Idade Média, entre os séculos VII e XIII. A população euro­peia vivia em segurança sob o amparo do Império Romano, que abrangia grande parte do mundo então conhecido. Suas armas e suas leis eram a base da estabilidade social da popu­lação. Com a queda de Roma, em 476 d.C e o início do esfa­celamento do Império, com a invasão de tribos germânicas, há um sentimento de desorganização e impotência, propício para que a população busque segurança em forças sobrena­turais. A Igreja assume assim este poder e os Evangelhos são o grande apoio de todos. É quando a interferência divina é chamada para solucionar pendências penais.

A mais utilizada de todas as ordálias são os duelos, onde o vencedor será aquele que recebe a preferência de Deus no combate. Mesmo quando a Igreja abole as ordálias e os governos o fazem no século XIX, os duelos continuam como solucionador de problemas entre pessoas, agora na clandesti­nidade, até seu desaparecimento total.

As mais curiosas formas de Juízos de Deus estão relacio­nadas com o fogo, a água: coloca-se um ferro em brasa nas mãos do acusado. Três dias depois, os juízes tiram as banda­gens e se a ferida está em processo de cicatrização, o acusado será absolvido. Se, ao contrário, há bolhas e infecção, é sinal de que Deus aponta seu dedo acusador. O acusado é lançado a um rio ou lago amarrados os pés e as mãos e atado a um peso. Se flutuar, é a mão de Deus que demonstra sua inocência. Se afundar, estará condenado. Outra: num lago de água gelada, coloca-se o acusado imerso, só a cabeça de fora. Uma hora depois, se o mesmo da água retirado não estiver tremendo, é a prova de que é inocente. Há também a prova da cruz: acusado e acusador ficam de frente, com os braços em forma de cruz. O que primeiro não aguentar o braço estendido é o culpado.

No IV Concílio de Latrão, em 1215, a Igreja condena e abole os Juízos de Deus, sob a justificativa que se usava o nome do Senhor em assuntos não sagrados.

As ordálias permanecem hoje como curiosidade do depois chamado Direito Processual Penal e nos mostram um mo­mento curioso de nossa caminhada como civilização.

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