Por Rodrigo Fonseca, especial para o Estadão
Embora a pandemia tenha adiado as filmagens de seu novo longa-metragem, Occhiali Neri, no momento em que celebrava seus 50 anos de carreira como realizador, o romano Dario Argento confessa ter aproveitado os períodos de confinamento da Europa, em função da covid-19, para levar seus conhecimentos sobre o terror para uma outra fronteira: a das narrativas serializadas.
Artesão maior do Giallo, filão à italiana na fronteira entre o horror e o suspense, sempre com lâminas afiadas ou manifestações sobrenaturais sedentas de sangue, o diretor de Suspiria (1977) e Phenomena (1985) – filho da fotógrafa brasileira Elda Luxardo – anda afoito para desbravar o streaming, tendo um projeto chamado Longinus. Aos 80 anos (comemorados no dia 7 de setembro), Dario explicou ao Estadão, em conversa por telefone, que o “ambiente das plataformas digitais é um espaço de criação interessante e rico” e pretende levar a ele uma série “sombria”.
Desde Drácula 3D, exibido em Cannes em 2012, ele não filma, tendo no currículo pérolas pop do assombro como Tenebre (1982) e Prelúdio Para Matar, pelo qual ganhou o prêmio de melhor direção no Festival de Stiges, na Espanha em 1976. Em outubro, ao ser homenageado no Ca’ Foscari Short Film Festival, em Veneza, ele prometeu voltar aos sets em maio, para filmar o tal Olhos Negros que o coronavírus atrasou, sobre uma jovem que perde a visão e passa a ser perseguida por um monstro. E desenvolve seu seriado paralelamente, tentando entender o que vai sobrar do Velho Mundo após a ressaca pandêmica.
Como a pandemia atropelou sua vida e seus planos em 2020?
Eu fiz 80 anos em meio a um processo histórico pandêmico que nos leva a um desânimo coletivo, que traduziu nossa impotência na forma de lockdowns. Fiquei confinado em casa lendo e vendo filmes, mas tive que lidar com as mudanças de data em Occhiali Neri, que pretendia rodar em abril e terei que jogar para maio de 2021. Há o plano de fazer minha série, Longinus, e levá-la ao streaming, que viceja como um caminho novo. Tenho a sensação de que a minha obra sempre falou de forças que invadem vidas alheias, rompendo uma lógica de sanidade e gerando perigo. De certa forma, foi esse o saldo do coronavírus. Ele invadiu nossas vidas e ele deixou tudo menos são.
Qual é o espaço que o Giallo alcançou no país que fundou o neorrealismo nas telas?
Os grandes cineastas italianos da geração dos anos 1940 e 50 deram ao mundo parábolas políticas. Parábolas que foram um resultado do horror da Segunda Guerra e das barrigas que roncavam famintas diante da tragédia fascista que destruiu o país. O motor neorrealista é a fome. O motor do meu Giallo são os sonhos que tenho. Tem algo de Freud e Jung nas tramas que eu filmo pois eles dois mudaram nossa representação do mundo a partir do inconsciente. Os assassinos dos meus filmes são a metade sombria do nosso inconsciente. Meus monstros são um reflexo dos meus sonhos de criança.
Qual é a metáfora do olhar, do ver, do enxergar em Occhiali Neri?
Eu tenho como protagonista uma mulher que acaba de perder a visão e passa a ser perseguida por alguém que não consegue ver. Eu sempre investi na força do feminino em minhas histórias. Sempre investi em mulheres fortes. Em 1968, escrevi o roteiro de Era Uma Vez No Oeste, com Bernardo Bertolucci, porque seu diretor, Sergio Leone, um mestre do western, dizia não saber representar figuras femininas aguerridas. O que me interessa, a partir da perseverança das minhas personagens, é entender as forças que desestabilizam as pessoas.
O senhor criticou publicamente o remake de Suspiria, lançado por Luca Guadgnino há dois anos, alegando que o filme dele não assusta. Mas o que assusta um mestre do medo?
Na vida: a sensação de desânimo, que foi o efeito simbólico mais destrutivo da covid-19, fora as mortes que ele causou. Na arte: os clássicos do expressionismo alemão e os filmes de Val Lewton (produtor de ‘Sangue de Pantera’) dos anos 1940. Hoje, eu vejo Guillermo Del Toro (diretor de ‘A Forma da Água’) trazer algo de muito particular para o terror. Ele consegue levar poesia a um gênero que trabalha com as trevas.
Aos 80 anos, o senhor consegue já entender o legado que vem construindo?
Tenho um oceano de emoções dentro de mim. Escrevo e filmo sem pensar muito no que as ondas desse mar representam. Só depois do filme pronto eu mergulho nessas águas. Os mergulhos me revelam uma tentativa de escavar as profundezas da condição humana, no que ela tem de mais sombrio.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.