Por Leandro Nunes
Foi no ano de 1988 que a atriz Dirce Thomaz se lançou em São Paulo. Vinda de Curitiba para tentar o ofício da atuação no Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, de Antunes Filho, a filha de mineiros não imaginava que sua estreia na peça Xica da Silva também a levaria para os palcos do mundo. “Lembro que o filme também estava no auge. Eu e minhas amigas tínhamos cortado o cabelo curto igual ao de Zezé Motta”, conta a atriz. “Junto com o batom preto, éramos como rainhas.”
Montagem que marcou uma transformação criativa na carreira de Antunes, a versão de Xica da Silva, que estreou em março daquele ano, teve figurinos e adereços restaurados recentemente, no projeto capitaneado pelo Sesc Memórias. O espaço localizado no mesmo prédio da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio) armazena mais de 20 mil itens originais – entre materiais de audiovisual, imagens, textos e gravações – desde a criação do Centro de Pesquisa Teatral, em 1982. “Cuidamos do recolhimento da documentação nas esferas da instituição, além de realizar a desmetalização, catalogação e guarda dos itens”, explica Silvia Hirao, responsável pela coleção do CPT.
Na peça, os trajes confeccionadas em algodão cru pelo cenógrafo e figurinista J. C. Serroni representavam os muitos núcleos da história, como a corte negra, a corte branca e os soldados. Com foco na protagonista, o espetáculo narrava a transformação de uma mulher escravizada que ganhava o coração de João Fernandes, representante da Coroa Portuguesa, e se tornava a Rainha do Diamante.
O elenco negro na montagem não era novidade para Dirce, que resgata o legado do ator, poeta e dramaturgo Abdias do Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro. “Em 1944, Abdias pensava em um teatro para que os negros tivessem orgulho de sua identidade. E de fato, somos herdeiros de reis e rainhas ”
Ainda antes de Abdias, cita a atriz, o teatro de rebolado, na década de 1920, não era apenas para divertir as plateias. “As companhias negras de revista tinham pensamento crítico e ironia. Antes, os negros não podiam tocar no palco e ficavam cantando atrás das cortinas. Era o tempo disso acabar.”
Para a atriz, Xica da Silva ajudou a atualizar as próprias ideias a respeito da negritude, conta Dirce. Ao longo da carreira, a artista atuou em diversas frentes da criação artística. Em 1992, fundou o Centro de Dramaturgia e Pesquisa sobre Cultura Negra.
Três anos depois, estreou Os Sinos Dobram por Elas, a partir de relatos com mulheres que enfrentaram problemas psicológicos e violência. E em 2017 levou a história da escritora Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo, para os palcos. “Com o tempo precisei redescobrir que não fomos perdedores, mas estamos reagindo. Vejo que hoje a negritude está encontrando mais na força da memória”, explica. “Na periferia, por exemplo, a mídia alternativa chegou para ficar e tem papel fundamental ao dialogar com a atualidade e a nossa história”, ressalta.
A estreia de Dirce em Xica da Silva também foi uma porta para o mundo. A atração subiu no palco da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, em Seul, com participação de 159 países. Também fez apresentações no Japão. “Nunca imaginei que ia dar nisso”, conta ela. “Para nós, o teatro também é uma forma de resistência, assim como o carnaval, as festas religiosas, a comida e a maneira de se vestir.”
Restauro das coleções
No site do Sesc Digital, o acervo disponível para consulta inclui figurinos de outros espetáculos do CPT já restaurados, como A Pedra do Reino (2006) e A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1986). Para chegar até Xica da Silva, foram dois anos de pesquisa e restauro, conta Silva Hirao. “Entre os 150 trajes, muitos precisaram ser refeitos.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.