Tribuna Ribeirão
Entretenimento

Um passeio de Baden pelo jazz

Foto: Premio Moliere
Por Julio Maria

O que faz um menino ao descobrir que vive na mesma casa em que Batman viveu? Sai pelos cômodos abrindo portas e armários em busca das pistas que o homem morcego deixou até encontrar a passagem secreta que leva aos maiores segredos de seu herói. O Batman de Philippe era seu pai, Baden Powell, e o esconderijo estava logo ali, nos armários do violonista, em partituras envelhecidas e algumas poucas gravações em fitas cassete. Baden não gostava de tanta modernidade. Preferia escrever suas melodias sem anotar sequer os acordes que elas sugeriam. No dia em que Philippe as encontrou, abriu duas portas ao mesmo tempo. Uma que levava ao passado, nas tardes em que o pai colocava o violão sobre a coxa, e outra ao futuro, onde Baden adorava sempre estar.

Aos 46 anos, o pianista nascido na França, irmão do violonista Marcel Powell, Philippe, filho mais velho de Baden, construiu um projeto arrojado com o material que encontrou nos alfarrábios do pai. Ao se deparar com trechos de melodias deixadas sem conclusão e outras que se tornariam algumas de suas famosas obras, descartou as segundas e priorizou as primeiras. Um tempo depois, com uma gig (coletivo) arregimentada pelo trompetista Rubinho Antunes, colocou as cartas que tinha na mesa e pediu que os parceiros escolhessem as músicas. Cada integrante do quarteto Ludere, formado por ele, Rubinho, o baixista Bruno Barbosa e o baterista Daniel de Paula, escolheu duas que gostaria de arranjar e levou para casa. O grupo já havia feito os discos Ludere (2015), Retratos (2017) e Live at Bird’s Eye (2019).

Seria fácil se as faixas estivessem prontas ou se já tivessem sido lançadas. Homenagens e versões abastecem a música brasileira há mais de 100 anos. Mas, a novidade que requer reflexão e pode trazer dúvidas é o fato de ali estarem apenas os fragmentos pensados por Baden, muitos deles abandonados talvez por ideias mais promissoras. E então, veio a proposta de Philippe. Os trechos completos ganhariam arranjos do quarteto e segundas partes e os incompletos seriam finalizados em parcerias Algumas músicas receberam letra e o trabalho foi fechado e gravado para ser lançado nesta quarta (28) no álbum Baden Inédito.

O título sugere parte da entrega. O que se extrai do álbum não são músicas de Baden em sua integridade, mas desenvolvimentos de inspirações. Philippe vai ouvir que o Ludere se distanciou da essência do violonista, e isso muitas vezes foi exatamente o que aconteceu. Aos que prestam atenção nas formações percebem que, tirando o violonista convidado Thiago Carreri, o álbum não coloca o instrumento maior de Baden no foco. E então, como equalizar a expectativa de se ouvir Baden sem que Baden esteja presente em seus maiores signos? Eis a grandeza de Baden Inédito Assim como o violonista ensinou a só fazer algo que pertencesse a alguém se fosse para deixar sua marca, o quarteto ignorou o fato de orbitar ao redor de um músico filho do próprio homenageado e abriu todas as portas. Ao descolar do Baden que esperamos, o álbum traz um que, talvez, não tenha tido tempo de existir.

Vai Coração recebeu letra de Pretinho da Serrinha e a voz de Vanessa Moreno. Um samba cheio da tradição evocada por Pretinho mas com uma bateria reta e pulsante de Daniel, difícil de ser feita pelas tentações em quebrá-la. Ainda mais longe da ideia de um Baden conservador, algo que ele nunca foi desde que começou a dar outro rumo para o violão brasileiro de Dilermando Reis, a faixa Afrosambagroove tem de novo o rumo ditado pelo motor rítmico de Daniel de Paula. Os tradicionalistas podem ter dificuldades em digeri-la como uma obra de Baden, mas então é bom saber como era o Baden em casa.

“Eu não fico nessa de rezar missa do sétimo dia, de velar os mortos o tempo todo. Meu pai sempre me incentivou a olhar para frente e me trazia discos de Whitney Houston e de Michael Jackson”, conta Philippe. A sequência traz o jazz Lamento para Milton Banana, lembrando de um dos maiores bateristas do samba jazz que tocou muito com Baden nos anos 60. Uma balada para deixar mais à vontade o piano de Philippe e o trompete de Rubinho, um nome que pode ser apontado como um dos maiores sopros de sua geração, que não recorre a exibicionismos impressionistas. Se Baden a faria assim? Claro que não, e aí está a surpresa. “As pessoas perguntam para onde meu pai estaria olhando se estivesse vivo. Eu tenho certeza de que ele estaria olhando para frente.”

A música Partido tem um Baden mais explícito em sua melodia, mas até que o tema seja diluído pelos improvisos. Mais uma vez, o jazz prevalece na criatura livre que ele criou com LPs de Deus e o mundo e o leva para outros terreiros. Depois do tema Mergulhador, Meias Verdades parece atingir o ponto mais longe de qualquer resquício de Baden, mas ele está lá, tranquilo, até que Fabiana Cozza surja na faixa seguinte. O samba A Lua Não me Deixa, com letra de Eduardo Brechó, é difícil, cheia de caminhos tortos, sem uma cama harmônica tão confortável, mas que a voz e a afinação de Fabi domina sem temor.

Baden Blues não é um blues, mas o nome é ótimo. E fica ainda melhor quando o tema que o trompete faz e que pode ser imaginado no violão de Baden Powell quase que como uma brincadeira fica ainda melhor quando se torna um samba jazz conduzido pelo improviso do piano de Philippe. E o álbum fecha com Choro para Estudo, um dos hard choros nos quais Baden colocava tudo o que podia de sua mão direita. A gaita de Gabriel Grossi, arrasadora no solo, eleva a temperatura em muitos graus e estabelece, no final do disco, um novo parâmetro. Falta mesmo um pouco mais do espírito que Gabriel Grossi levou em outras faixas, um calor que traga a euforia de Baden em temas que até pediram por isso mas que, talvez por reverência, seus músicos preferiram resistir.

Philippe não vivia com o pai em seus últimos anos de vida, no final dos anos 90. Por isso, não pegou a fase em que o violonista deixou de interpretar os Afro Sambas feitos em parceria com Vinicius para ser coerente com sua conversão ao cristianismo evangélico. O que diria então Baden se visse o papa Francisco abrir uma janela no Vaticano para evocar um trecho de Samba da Bênção, outra parceria com Vinicius? Iria ficar confuso como até o papa pode ter ficado ao saber que levou à Igreja um samba que louva a “pele macia de Oxum.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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