Fratelli Tutti é o nome da carta-encíclica publicada pelo Papa Francisco no último dia 3 de outubro. Inspirada no exemplo de vida de São Francisco de Assis, esta encíclica ainda não teve a repercussão que merece. Talvez pelos tempos sombrios e impermeáveis que estamos vivendo, de ouvidos moucos a qualquer palavra ou sentimento de humanidade, solidariedade e compaixão para os que mais sofrem. O papa quis destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço. E neste amor, se declara feliz quem ama o outro.
O santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que inspirou o Papa a escrever a outra encíclica – Laudato si – o inspirou novamente para dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social. Com efeito, São Francisco, que se sentia irmão do Sol, da Lua, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne. Semeou paz por toda a parte, até entre os islâmicos, e andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos.
A encíclica se divide em oito partes e queria aqui destacar a quinta, que trata justamente de uma melhor política, já que estamos em plena campanha eleitoral para elegermos prefeitos e vereadores. Para se tornar possível o desenvolvimento de uma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações, é necessário que “a política seja colocada ao serviço do verdadeiro bem comum. Mas hoje, infelizmente, muitas vezes a política assume formas que dificultam o caminho para um mundo diferente.”
A Fratelli Tutti assume posições claras e proféticas diante de formulações políticas e econômicas que tendemos a naturalizar, como o liberalismo e o populismo. Como neste caso: “o desprezo pelos vulneráveis pode esconder-se em formas populistas que, demagogicamente, se servem deles para os seus fins, ou em formas liberais ao serviço dos interesses econômicos dos poderosos. Em ambos os casos, é palpável a dificuldade de pensar em um mundo aberto onde haja lugar para todos, que inclua os mais frágeis e respeite as diferentes culturas.”
Trata-se de um texto escudado em forte rigor teológico e diretamente referenciado nos evangelhos e em outras cartas pastorais. Mas incorpora também conceitos e definições de várias ciências ao propor discutir termos como “popular”, “populista”, “povo”, etc. E a partir deles, denuncia certos líderes que procuram “aumentar a popularidade fomentando as inclinações mais baixas e egoístas de alguns setores da população. E o caso agrava-se quando se pretende, com formas rudes ou sutis, o servilismo das instituições e da legalidade.”
Com todas as letras, a encíclica afirma que o mercado, por si só, não resolve tudo, “embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal.” Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas para qualquer desafio que surja. O neoliberalismo se reproduz sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do “derrame” ou do “gotejamento” – sem a nomear – como única via para resolver os problemas sociais. Não se dá conta de que a suposta redistribuição de renda não resolve a desigualdade.
Para a encíclica, existe uma política necessária que é aquela que não se deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma da eficiência tecnocrática. Embora se deva rejeitar o mau uso do poder, a corrupção, a falta de respeito das leis e a ineficiência, “não se pode justificar uma economia sem a política, porque seria incapaz de promover outra lógica para governar os vários aspetos da crise atual”. O Papa nos convida a revalorizar a política, que “é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas de caridade, porque busca o bem comum”.
O papa denomina de “caridade política” a esta política necessária. É preciso reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar a fraternidade que integre a todos não é uma simples utopia. Exige a decisão e a capacidade de encontrar os caminhos eficazes, que assegurem a sua real possibilidade. “Com efeito, um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no campo da caridade mais ampla, a caridade política”. A Fratelli Tutti é um verdadeiro vademecum, um convite e um guia para os que desejam fazer do exercício da política a verdadeira “caridade política”