Por Luiz Carlos Merten
Premiado pela crítica da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no ano passado, Aos Olhos de Ernesto teve sua estreia mundial no Festival de Busan, na Coreia do Sul, o maior da Ásia, na categoria World Cinema. Também foi exibido no Japão. No livro com a longa entrevista que deu a François Truffaut, Alfred Hitchcock recomendava sempre ao discípulo que pensasse no Japão – um público lá do outro lado do mundo, com outra cultura. A busca da universalidade. Com Ana Luiza Azevedo tem ocorrido isso. O público japonês ficou tocado por seu filme. “Eles têm muitos velhos, Ernesto não é um estranho para eles.”
Aos Olhos de Ernesto estreou no streaming no dia 17, nas plataformas Net Now, Vivo Play e Oi Play pelo Canal Brasil. Antes disso, já fora um dos preferidos do público no festival de pré-estreias do Espaço Itaú. Ana Luiza cita o elogio de um colega cineasta, o gaúcho Filipe Matzembacher – de Beira-Mar e Tinta Bruta -, nas redes sociais. “Ele disse que o Ernesto é um carinho feito filme.”
O velho fotógrafo uruguaio em Porto Alegre. Está perdendo a visão. O vizinho se preocupa com ele, mas quem se ocupa é a garota. Bia entra meio errada em sua vida, para tentar tirar proveito do velho cego, mas cria-se uma relação de afeto. Ele é Jorge Bolani, grande ator uruguaio – de cinema e teatro. Atuou em Whisky, de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll. “Enviei o roteiro e fomos a Montevidéu, a Nora (Goulart, produtora) e eu. Encontramos com ele num café. O Jorge já chegou com o personagem pronto.”
Ana Luiza conversa com o repórter pelo telefone. Cumpre o isolamento social em Porto Alegre. De alguma forma, isso tem a ver com o filme – a condição (velhice, cegueira) fragiliza Ernesto. Torna-o vulnerável, mas ele reage. Bolani enviou uma declaração: “Meu primeiro comentário é que Ana tem muito sentido do humor, mas o tem escondido e só exibe quando lhe parece necessário. Nosso encontro naquele café, em 2017, foi muito positivo. Cheguei e, para ela, tinha o physique du rôle. Já havia feito umas duas leituras do roteiro e o Ernesto já estava atuando no meu inconsciente. Isso só é possível quando o personagem provoca um impacto positivo na gente, seja no teatro ou no cinema”.
E mais: “A Ana construiu uma história cheia de humanidade, carga emotiva e sentido do humor. Expressou-a com delicadeza, simplicidade e profundidade. Não caiu na tentação a que seu relato poderia estar exposto – resvalar para o melodrama mais banal”.
Essa história já vinha impregnando a diretora há muito tempo. “Desde que fiz o curta Dona Cristina Perdeu a Memória, sobre a ligação de uma idosa com seu vizinho menino, virei uma espécie de especialista no assunto. Todo mundo passou a me contar histórias de velhice. Numa filmagem, o Fábio Del Ré, que fazia o still, me contou a história do pai dele, que estava perdendo a visão e, consequentemente, a autonomia. O pai estava com dificuldade inclusive para manter a correspondência com a irmã. Aquilo ficou comigo. A velhice é um momento dramaturgicamente muito rico, porque a gente pode escolher como vai viver a velhice, planejar, mas a doença, a cegueira e a dificuldade de se movimentar não são escolhas. São imposições trágicas que o Ernesto vive com dignidade.”
Embora a diretora não cite, é possível pensar nos grandes filmes sobre a velhice – Umberto D, de Vittorio De Sica, Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman. O Yasujiro Ozu de Viagem a Tóquio O Cacá Diegues de Chuvas de Verão. Mesmo inevitável, a velhice carrega seus tabus. As pessoas – a sociedade – têm dificuldade para encarar essa fase da vida. Fica todo mundo fantasiando – terceira idade, melhor idade. Bolani fala nos matizes do personagem. “Processar a cegueira progressiva implica adaptar o corpo inteiro a novos movimentos e também processar a dissimulação face a todos os demais, como se a rotina seguisse normal. A velhice, a solidão, o conflito com o filho, os altos e baixos da relação com Bia, a cuidadora de cães que constitui o eixo central do relato, tudo isso foi muito prazeroso. Já estava desenhado no roteiro (de Ana e Jorge Furtado), muito bem escrito E, finalmente, o que essa história faz é redescobrir a possibilidade de amor na última etapa da vida. É uma pergunta e talvez um desejo da autora – é possível o amor senil? Sim, é possível”, diz o ator.
Bia (Gabriela Poester) entra na casa para tirar proveito da cegueira de Ernesto, mas, partindo da diferença, eles conseguem estabelecer uma relação franca. Para ele, é impossível que alguém – ela – queira ver Ladrões de Bicicletas, o clássico de De Sica, no celular. E, para Bia, é o fim a maneira cerimoniosa como Ernesto se comunica com a mulher amada nas cartas. Com o vizinho, a relação é antiga, e outra. O jornal diário. A literatura. “Para mim, foi uma feliz coincidência o Mario Benedetti estar no filme”, diz Bolani. “Já havia feito A Trégua no Teatro, em 1996. O homem viúvo e maduro que encontra o amor quando pensava que isso seria quase impossível. Nada é casual. Benedetti, a música e a ternura nos confraternizam como povos vizinhos. E essa é a ideia que percorre o filme, como propósito da diretora.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.