Por Luiz Carlos Merten
Entre fato e ficção, João Jardim vem construindo sua obra – documentários como Janela da Alma, em parceria com Walter Carvalho, e Pro Dia Nascer Feliz, ficções como Amor! e Getúlio. São inesquecíveis as cenas de Agnès Varda relatando a dificuldade de visão do marido cineasta, Jacques Demy, quando já estava terminal. Ela o filmou até o fim, aquela epiderme tão próxima, ampliada, granulada, até virar quase uma abstração. Aquele episódio, especificamente, era sobre a perda da visão – os olhos, janelas da alma -, mas também sobre o amor.
O ano era 2001 e, em 2006, João percorreu o Brasil para traçar um retrato da educação em Pro Dia Nascer Feliz. Histórias de estudantes em diferentes escolas e Estados do Brasil. Uma radiografia do ensino, mas também das diferenças sociais nesse Brasil imenso. Escolas urbanas, que abrigam a elite e tudo têm. Escolas públicas em pequenas cidades do interior. Em todas, João ia em busca dos sonhos e anseios, dos medos da juventude. E agora ele está de volta a esse universo em Atravessa a Vida, seu novo documentário que participa da mostra competitiva do 25º É Tudo Verdade. Atravessa a Vida terá sua estreia nesta sexta, 25, às 21h. Terá nova sessão, no site www.etudoverdade.com.br, no sábado, às 15h, seguido de debate com o diretor às 17 h.
Desta vez, João filma estudantes que se preparam para o Enem. “O filme nasceu de um desejo forte, meu, de revisitar a vida no ensino médio. É um momento muito importante, que marca o início e a partida do colégio que tanto nos protege, mesmo com as suas dificuldades. E, ao mesmo tempo, eu queria expor o Brasil emocionalmente, esse País tão grande, e tão desigual. Olha o que esse governo está fazendo com a educação”, alerta. O filme nasceu de uma série de reportagens na imprensa que listavam as escolas com seus índices de aprovação no Enem. “Eu queria uma escola fora dos grandes centros e com mais de mil alunos, para refletir a diversidade brasileira. Descobri essa cidade de 40 mil habitantes no interior de Sergipe, Simão Dias. E lá que fica o Centro de Excelência Dr. Milton Dortas, que tem cerca de mil alunos. Era tudo o que queria, um recorte verdadeiro das dificuldades da educação brasileira. Ao mesmo tempo que se preparam para o grande desafio do Enem, esses alunos de 3.º grau do ensino médio que sonham com uma vaga nas universidades públicas também refletem sobre temas urgentes da nossa realidade Dentro e fora da sala de aula, eles discutem tudo. Futuro, aborto, pena de morte, a ditadura militar.”
E João prossegue: “Fui lá e conversei com a diretora, expliquei o tipo de filme que ia fazer. Meu modelo era o High School, do Frederick Wiseman. Voltei para casa, passou-se algum tempo, e a Daniela (a diretora) me ligou para dizer que achava que não seria mais possível porque a escola ia passar por uma reforma. Mas foi o que de melhor poderia ter acontecido. Os deuses do cinema me ajudaram! Vendo os operários trabalhando e os jovens e seus professores debatendo essas questões tão graves, é difícil não pensar no mundo deles, no Brasil em fase de transformação.”
Entre 1977 e 1986, Arnaldo Jabor criou sua trilogia entre quatro paredes, e o primeiro filme, Tudo Bem, era justamente sobre um apartamento em processo de reforma, como o próprio Brasil, sob a ditadura. “Estamos vivendo este momento surreal da nossa história, em que o Brasil atravessa a crise sanitária da pandemia, com todos esses reflexos na economia, na saúde, na educação, na cultura e no meio ambiente, e o governo só diz que está tudo bem. Mas bem onde?”
Sem pandemia, o É Tudo Verdade teria ocorrido no primeiro semestre e a expectativa de João seria já ter lançado o filme para participar das discussões sobre o Enem, que agora está suspenso, para o ano que vem. “Filmamos na eleição de 2018, então todos os temas estavam na ordem do dia, o País estava dividido.”
E mais: “Queria fazer o filme todo de cinema direto, sem entrevistas, mas aí ocorreu de a escola parar suas atividades durante alguns dias no primeiro turno, mais outros no segundo.
Estava lá, parado, com a equipe e resolvi fazer o que inicialmente não faria – entrevistas com os jovens. Ficaram algumas no filme porque me pareceram reveladoras. Muitos desses jovens estão sendo criados pelas mães sozinhas. Uma garota fala de tudo que perdeu, com o afastamento do pai para constituir outra família. E não foi só a perda financeira, é também o afeto
O pai agora não tem mais tempo para ela. Confesso que me surpreendi com a potência e a clareza do pensamento dessa garotada. Das trocas deles com os professores, surgem questões que nos fazem pensar sobre quem somos, para onde estamos indo?” João Jardim, mais uma vez, acertou o tom. Seu filme vai reverberar no É Tudo Verdade.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.