A história da menina de 10 anos que engravidou após ser estuprada pelo tio em São Mateus, no Espírito Santo ganhou o noticiário nacional e aflorou uma triste realidade. O abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes não é novidade, ao contrário, é histórico. Desde o ano 2000, no Brasil, o dia 18 de maio é considerado o Dia Nacional de Combate à prática, mas as ações de sensibilização e informação são permanentes. Uma ferramenta importante é o Disque 100, canal de denúncias onde no ano passado foram registradas 17 mil ocorrências.
O lar, que deveria ser o local mais seguro do mundo, é onde ocorre a maioria dos casos, 73%. Os maiores algozes são os pais ou padrastos com 40% das denúncias. Analisando os dados do Fórum de Segurança Pública, entre 2017 e 2018, observamos que quatro meninas de até 13 anos são estupradas a cada hora no país. No ano de 2018, chegou-se ao repugnante recorde de ocorrências de abuso sexual infantil com 32 mil vítimas. Isto sem contar a subnotificação, pois muitas vezes as garotas não têm coragem de fazer o registro, pela vergonha, pelas ameaças do agressor ou são impedidas pelas próprias famílias.
Nossa cultura sofre distorções e diante de alguns fatos o posicionamento coletivo é preocupante. Quando se trata de violência sexual muitos atribuem a culpa à própria vítima, pela vestimenta, comportamento, forma física ou qualquer atitude que poderia “incentivar” a prática, um erro crasso. Discursos de que a nova geração é tecnológica, avançada e mais consciente aumentam as inconcebíveis justificativas de violência.
Nesta semana também foi discutido pelo congresso a derrubada do veto presidencial relativo ao aumento de salário de servidores públicos, inclusive os da linha de frente no combate à pandemia de covid-19. Os mesmos trabalhadores já tiveram negado o direito a indenização em caso de contaminação.
Interessante é que, nos últimos tempos, governantes dirigiram seus canhões para o funcionalismo público em geral, atacando direitos e garantias e aqueles que devotaram sua vida servindo à coletividade agora servem de bode expiatório recebendo a culpa pelas crises econômica, política e até a sanitária. Os mesmos trabalhadores que receberam elogios, músicas, flores e outras singelas homenagens, recebem a notícia do congelamento de salários e benefícios.
Como justificativa alegam que o sacrifício da categoria possibilitará a ajuda a estados e municípios, mas o curioso é que o plano de socorro emergencial vai durar até 31 de dezembro de 2020, mas os servidores de todos os níveis de governo, sofrerão o congelamento até dezembro de 2021.
Na prática a lei impede a união, estados e municípios concederem recomposição salarial ou qualquer meio de valorização da categoria, mesmo possuindo estabilidade econômica e fiscal e capacidade orçamentária para tal.
Dois temas polêmicos que merecem análise aprofundada e que, em primeiro momento traduzem grande injustiça. Se a violência sexual contra crianças e adolescentes possui maior incidência dentro do próprio lar, significa que as famílias estão falhando, não apenas na educação e orientação dos pequenos, mas principalmente na conduta dos adultos. Se existem mazelas no serviço público, o problema é de gestão, que geralmente é feita pelos agentes políticos e não pelo simples funcionário.
Acusar a criança vítima de estupro é um equívoco que fomenta injustiças e até incentiva novos casos. Guardadas as devidas proporções, atribuir ao servidor de carreira a culpa pelos problemas estruturais do serviço público, além de injusto, em nada colabora para que tenhamos um serviço público de qualidade.
Culpabilizar as crianças violentadas, congelar reajuste salarial aos servidores, especialmente aos da linha de frente no combate à pandemia, além de negar indenização a quem foi contaminado pelo coronavírus no exercício do trabalho e ficou com sequelas é o mesmo que reafirmar que a vida do próximo pouco importa.