“… a razão interpôs-se e avisou-os de que o perigo estava ali à espera dos imprudentes, naqueles corpos sem vida” (Saramago, José, 1995. fls. 91, in “Ensaio sobre a Cegueira”).
Leio no jornal The New York Times do último domingo, 16.08.p.p., que o Brasil, dado a nossa quantidade de especialistas em imunização, nossa infraestrutura para pesquisa e produção de vacinas, tornamo-nos o país da vez para testagem e parcerias mundial na corrida para a fabricação de vacinas e testagens para a covid-19 (coronavírus). Isto fez-me pensar em dois personagens da Ilíada de Homero, Ajaz Menor, filho de Oileu e AjazTelamônio, filho de Telamão, o primeiro, imprudente, inescrupuloso, o segundo, controlado, precavido.
Nos últimos três meses estamos tendo uma média de mil mortes diárias, atingimos aquilo que os imunologistas chamam de platô do vírus, pois é, estabilizamos no Planalto e, a depender das decisões (veto presidencial ao disposto que determinava o uso de máscara no sistema penitenciário, lei 14.019/2020), a depender da linguagem do sr. “só uma gripezinha” ecoada planície afora – ainda que timidamente por alguns alcaides -, a necropolítica irá continuar grassando a vida do nosso povo, principalmente dos/as mais vulneráveis.
E falo isso ante tudo que temos ouvido acerca do retorno às aulas. Precisamos reiniciar às aulas, nisso temos um acordo-comum. A pergunta é: quando? Como? Antes da vacina? Após baixar o platô do vírus? Cuibono (quem interessa?), é a pergunta que os latinos fariam ao nos ver apressando o retorno às aulas.
Dentre as virtudes de AjazTelamônio (Ilíada), uma delas era ser cuidadoso, ser-prudente, andava com um escudo com sete camadas de couro e a oitava de bronze. Prudência, que os romanos mitificaram no deus Craytus, o deus romano da guerra e da prudência.
O prejuízo do ano escolar letivo é gigante, quiçá quando levado em conta a ausência de acesso à tecnologia nas periferias. Precisamos voltar às aulas, sim, todavia, isso deva ser feito com prudência, com responsabilidade, acuidade. É tarefa do governante municipal, do secretário de saúde e da educação, junto com líderes da Câmara Municipal, entidades de classes,
sindicatos e outros representantes da sociedade civil, manter um canal de dialogo aberto e fluente; é tempo de esmerilhar o dom da escutatória.
“Diálogo é conhecer o logos (digamos, a razão) do outro” (RIBEIRO, Renato, 2018. fls. 16, in “Á pátria educadora em colapso”).
Prudência para evitar cair no canto da sereia do setor privado da educação e apresar o retorno às aulas para atender interesses financeiro lançando milhares de crianças e profissionais da educação e familiares em risco de contágio e propagação do vírus.
Prudência no sentido de ter humildade para aprendermos com experiências de fora o cuidado no retorno às aulas.
“O cuidado expressa a importância da razão cordial, que respeita e venera o mistério que se vela e revela em cada ser do universo e da terra” (BOFF, Leonardo, fls. 34, in Cuidado Pastora em Tempos de Segurança, Ronaldo Sather-Rosa, 2010).
Será preciso fazer uma escala com professores/as jovens e saudáveis para reiniciar as atividades de sala, reservando aqueles/as que tenham grau maior de contágio do vírus por questões de idade ou de saúde para continuar as aulas no formato a distância. Nesse, que possamos dar atenção especial as ciências exatas ante o tempo distanciado por conta da pandemia, reservando o lúdico e as humanas no modelo à distância, sem prejuízo dum reinicio integral com todas as cautelas imprescindíveis.
Por fim, é preciso reconhecer que a pandemia escancarou nossas mazelas, nossas desigualdades, o mundo nos viu despido. Eis o bônus da pandemia, trazer a luz aquilo que muitos de nós tentam esconder, ocultar perante o mundo. Que possamos aproveitar essa crise para promover grandes transformações, tanto na atividade privada como no setor público.