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Realejo

Há uns tantos anos, talvez uns setenta, as praças públicas eram constantemente visitadas por homens ou que tocavam o realejo ou que exibiam uma misteriosa mala no interior da qual, segundo ele, habitava uma cobra venenosíssima.

O amigo da cobra era batizado com a expressão o “homem da mala”. Sem expedir aviso prévio, o homem da mala, na manhã de qualquer dia, surgia num ponto da praça. Colocava a mala no chão e comunicava aos curiosos, que no interior dela habitava uma cobra tão poderosa que saltava mais alto do que a torre da igreja. E o que era muito pior, uma dentada dela levava imediata­mente a vítima ou para o paraíso ou para o inferno.

Aquele homem falava sobre a cobra quase sem parar por isso que, de vez em quando oferecia aos presentes alguns produtos, como Quina Petróleo para os cabelos; ou Elixir Paregórico para dor de barriga; ou pomada de basilicão para a cura de todos os malefícios, até mesmo para bicho do pé. Vendia bem seus produ­tos, mas abrir a mala para exibir a cobra, nunca fez.

O homem do realejo era mais tranquilo. Armava uma caixa sobre um pedestal. A caixa poderia ser dividida em três partes. Na parte mais alta havia uma gaiola com um papagaio; na parte mais baixo uma gaveta contendo um grande fichário; a parte do lado exibia uma manivela.

O homem parava numa esquina e punha-se a rodar a manivela, reproduzindo sempre uma música triste, mas consideravelmente bonita. Os interessados aproximavam para “tirar a sorte”, pelo preço de quaisquer mil réis. Era aberta a gaiola e de lá saia o papagaio ensi­nado que com o bico não só abria a gaveta como de lá tirava um dos papelotes que continha a “sorte” do freguês. Ou da freguesa.

Num dia perguntei àquele homem como é que o papagaio conseguia ler a sorte do freguês. Não era proibido revelar o futuro das pessoas? Respondeu que os papelotes do papagaio não continham a revelação do que estava por vir, mas apenas um voto de felicidade, como a chegada da esperança aguardada ou o desaparecimento de uma tristeza molestada. Jamais prometia a indicação da dezena premiada da loteria.

O papagaio do realejo não prometia revelar o futuro de um fato, mas, sim, a expectativa do advento de uma felicidade ou o encerramento de uma amargura.

Muito mais tarde um professor, falando sobre o argumento ontológico de Santo Anselmo, registrou na minha memória a expressão de Duns Scot: “A existência da possibilidade do ente infinito é possível, ou seja, se é possível sem contradição, existe necessariamente.”

Não mais encontrei o homem da mala e nem mesmo o ho­mem do realejo, especialmente deste último para perguntar-lhe se o papagaio ainda sustenta a humanidade infinda, especial­mente agora convertida em vítima de confessada e reconhecida contradição.

Induvidosamente as geleiras dos polos estão se derramando no mar; as folhas; os bichos das florestas estão sendo queimados por chamas infernais; os corpos dos homens estão sendo consu­midos por micróbios intocáveis; o direito à liberdade derrama-se ao nível da sarjeta. A contradição da humanidade é imposta pela própria humanidade!

Na ausência de um Duns Scot, não seria possível invocar as profecias do papagaio do homem do realejo para perscru­tar o futuro em busca das chaves ligadas à busca do infinito da humanidade, alojada na percepção infinita e não contraditória do universo? Os homens surgiram para eliminar as florestas, os mares, os animais em busca de encontrar não as profecias do realejo, mas especialmente a morte da humanidade?

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