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‘Não deixe seu coração esquecer de mim’

(Homenagem ao Dr Carneiro, Mago da Cardiologia, um mês após seu falecimento)

No tempo que eu era moço, e minha algibeira de anos pouco pesava, costumava eu subir e descer as escadarias do complexo HC Campus (RP) como se quisesse aferir as forças das batidas de meu jovem coração. Na realidade, parava com frequência em seus andares e, para além de rever amigos, gostava de ouvir suas estórias sobre profissio­nais e pacientes que lá sempre foram bem atendidos. Ali, como tem sido desde a sua fundação, a sua mais impor­tante missão: valorizar a vida. Das inúmeras estórias que lá me contaram, e que mesmo com o decorrer dos anos jamais pude esquecer, lembro-me das que irei relatar. A do sabonete milagroso do Doutor José Ernesto, conhecido como prosador da Vila Tibério, que se espalhou na região de Ribeirão Preto como produto detentor da milagro­sa capacidade de emagrecer. Outra, sobre o Dr. Harley Bicas, um dos mais famosos oftalmologistas que conheci, referente ao seu tratamento sobre estrabismo, que preconizava “Deus faz errado, o Dr. Bicas corrige”. Uma terceira, sobre a enfermeira que “plantou” a própria mãe, colocando as cinzas destas num vaso em que centenas de rosas do deserto germinaram, assim permanecendo por muitos anos. Uma quarta, sobre o velho cobertor do Dr. Joaquim, que somente abraçado ao mesmo conseguia adormecer.

Sobre o Dr. Carneiro, trata-se de história em que sou narrador e per­sonagem. Começou quando ouvi de uma paciente, numa das enfermarias das cirurgias cardíacas, “Esse médico é tão dedicado que seu abraço cura”. E para aqueles que não o conheceram, trata-se de um dos muitos ami­gos médicos com o qual conviver foi uma lição divina. Dizia ele com sua peculiar humildade, filho que era do interior paulista, que tal habilidade adquiriu auxiliando no serviço paterno de sapateiro. Carneiro, paralelo a esta habilidade, possuía inúmeras outras. Inteligente, criativo e extrema­mente amoroso e zeloso com seus pacientes, graduou-se em Medicina em 1965 e, ao longo de sua bela trajetória médico-acadêmica, fez Doutorado, Livre-docência, Adjunto e Titular em cirurgia torácica e cardiovascular. Mais de quarenta anos de sua vida dedicou-os, integralmente, ao ensino e à pesquisa. E muitas foram as vidas salvas por suas mãos, sem jamais esquecer da assistência. Médico completo, via em seus pacientes mais que um corpo e órgão integrados: a deferência, especial, às emoções que estes com ele compartilham.

Um dia, estava eu caminhando em direção a uma das belas e arbori­zadas ruas do Campus da USP-RP, quando avistei Dr. Carneiro, ainda de avental branco, movendo, carinhosamente, as terras e flores dos quintais da casa do campus na qual ele morava há um bom tempo. Parando, então, diante do local, encantado com as flores, e mais surpreso ainda com a agilidade de suas mãos, que não paravam, indaguei qual era o segredo para conseguir tão belas flores. Sem titubear, Carneiro, de pé, me respondeu serem as flores como seus pacientes: frágeis e merecedores de todo carinho. E num gesto de profunda amizade, gentilmente convidou-me para adentrar sua casa. Já dentro, ofereceu-me um cálice de Porto, cujo sabor minha memória aprouve-se de guardar por toda vida.

Anos depois, na função de Prefeito do Campus da USP, e responsável administrativo pela manutenção das históricas casas de colonos e docentes do Campus, recebo um processo no qual se requeria que todas as casas fossem destinadas às atividades com fins acadêmico-científicos do Campus. Lembro-me, como se fosse agora, a ter me negado a fazer o despejo daquele mag­nífico morador, mago da cirurgia cardíaca. E assim despachei: “O morador desta casa cuida das flores de sue jardim como cuida de seus pacientes nas enfermarias do HC, a quem ele carinhosamente chamava de ‘meu hospital’”. Nas discussões administrativas que se seguiram, cobraram-me isenção e imparcialidade no julgamento do mesmo.
Como usual, encaminhei o processo à reitoria que, na ocasião, era ocupada pelo vice-reitor, cuja unidade de ensino era de Ribeirão Preto. Este homem, sério, de poucas palavras, vibrante e que não titubeava em suas decisões, assim despachou: “‘Sou uma das flores do Dr. Carneiro’. Arquive-se.”

Na cerimônia de atribuição do título de Cidadão Ituveravense, que lhe coube por honra e mérito, lá pelas tantas subiu no púlpito uma moça que, em discurso comovente, relatou a todos estar viva graças a um milagre do Dr. Car­neiro quando a mesma nem engatinhava. E se, na juventude, graduou-se em Medicina, e especializou-se em cirurgia cardíaca, foi por inspiração ao trabalho do Dr. Carneiro, prometendo, principalmente, ser fiel a todos os preceitos ético que ele lhe compartilhou. Quem o conheceu daquele complexo hospitalar talvez não estranhe saberem isso do mesmo. Mas, aos que não o conheceram, saibam: Carneiro vinha, ele mesmo, buscar seu paciente na recepção, tratando este como um velho conhecido que à boa casa torna. E, por suas mãos, e consideração quase paterna, estes pacientes com ele seguiam para o hospital, ou para a cirurgia, quando necessário, cientes de que conduzidos o esta­vam sendo por uma espécie de “anjo” de mãos longas, finas e hábeis, sempre de Deus acompanhado.

Passaram-se os anos. Até chegar o dia em que ao Porto retornamos. Mas, agora, não mais para celebrar as flores que ele tanto amou cultivar, mas, sim, para celebrar a nova vida, que ele, experiente, devolvia ao meu coração. Expli­co: recém-saído da sala de recuperação, eis que, numa das muitas visitas que me fez, Dr. Carneiro trazia, escondido às suas costas, um pacote. Sabendo-me viciado em trabalho, disse-me que trazia, oculto, um artigo para que eu o revisasse e vertesse ao inglês. Ao que respondi que, certamente, eu o faria de bom grado, entediado que estava com o repouso no hospital. Eis que este amigo abriu o pacote, dele desnudando uma vistosa garrafa de Porto. Ao que acres­centou: “- Saudemos à vida, José! À sua nova vida”.

Talvez, devido às inúmeras tarefas em que nos envolvemos ao longo da vida, protelei visitar o Dr. Carneiro nos últimos dois anos. Mas no último Natal, em dezembro de 2019, abri ansioso um cartão de Natal, lindas letras desse mago da cardiologia: “Não deixe seu coração esquecer de mim.” Lembrando Brecht: “Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons. Há aqueles que lutam muitos dias, e por isso são muito bons. Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda. Porém há aqueles que lutam toda vida; esses são os imprescindíveis.” Descanse em paz, meu amigo.

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